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Quando a malagueta não está em nossos olhos, é fácil demais tolerar música num volume ensandecedor a ponto de fazer até o tinhoso tapar os ouvidos com receio de que sua irritabilidade, que é algo inerente à sua natureza demoníaca, aumente ainda mais. Além do aumento da irritabilidade, a poluição sonora ocasiona também outros distúrbios, como alteração no humor, falta de concentração, aumento da frequência cardíaca, distúrbio do sono. E há mais moléstias. Tudo isso em decorrência do aumento do famigerado hormônio do estresse, que, em quantidade demasiada, ocasiona os problemas mencionados. Muitos assassinatos motivados por poluição sonora já aconteceram.

Gosto de jogar conversa fora, sobretudo com a minha amiga Ângela Lobo. É uma amiga que apunhala pela frente como observou o icônico poeta Oscar Wilde em relação à postura a ser adotada pelos verdadeiros amigos. Ângela não gosta de ser chamada de poeta meia-pataca, coisa que também sou enquanto cronista (e até enquanto gente), e ela sabe disso. Inclusive nem lê minhas crônicas. O que não lhe faz perder nada.

Às vezes ela deixa escapar algumas coisas interessantes. Já colhi muitas frases boas em conversas jogadas fora. Dias atrás falávamos sobre paladar musical, e ela me saiu com uma pérola. Me contou por que há mais pessoas curtindo o sertanejo fake — aquele que nada fala de sertão, mas apenas de “vuco-vuco, tchê tcherere tchê tchê, parapapá” com mulheres que não passam de meras lixeiras de esperma: “porque há mais moscas do que borboletas”. Desnudando a metáfora, me disse que a causa da volumosa quantidade de pessoas com ouvidos podres se deve ao aumento do analfabetismo funcional, o qual cega as pessoas para o entendimento de músicas com letras mais elaboradas, mas ricas estilisticamente. Segundo ela, hoje o “funk é só fuck”. Putz! Realmente o funk fodeu geral, pornografizou-se. Ou melhor, a pornografização  é geral. “A deusa da minha rua com olhos de lua”, “a garota papo firme que o Roberto falou…” de outrora hoje é uma cachorra, uma piranha, que só não transa com sapo porque não sabe qual é o macho.

Poluição sonora: além do tolerável

Em nossa conversa também entrou poluição sonora. Expliquei-lhe que poluição sonora é diferente de perturbação do sossego. Enquanto aquela ocasiona problemas que atingem um grande número de pessoas pelo fato de gerar um volume de ruído além do limite tolerável aos ouvidos humanos, esta não tem decibéis elevados, mas gera um problema de ordem menor, que perturba alguém especificamente. Eu tive um vizinho (morava no apartamento acima do meu) que tinha um cachorro que certamente sofria de insônia, pois ficava caminhando praticamente a noite inteira pela casa e suas unhas eram grandes. E aquele barulho perturbava.

Do Picabay

Certa vez, depois de contar centenas de carneirinhos e o lobo da insônia devorar todos, e o cão caminhando pela casa (certamente taciturno), interfonei na casa desse vizinho, isso já por volta meia-noite. Além do pedido de desculpas por lhe incomodar àquela hora, pedi-lhe mais duas coisas: que cortasse as unhas do seu pet e lhe desse algum calmante para ele dormir, pois eu não estava conseguindo pegar no sono com o barulho do animal caminhando. A perturbação acabou, e ele acabou mudando do prédio. Fiquei contentíssimo com a partida do vizinho. Voltei a dormir sem contar centenas de carneirinhos e sem lobos famintos espreitá-los.

Sobre o refresco que é a nossos olhos a pimenta em ouvidos alheios, conforme está no primeiro parágrafo, contei a Ângela um episódio ocorrido em agosto (mês de cachorro louco) de 2017. À época eu era o jornalista responsável pela assessoria de imprensa da Agência Municipal do Meio Ambiente (Amma), e minha equipe era composta pelos pronomes oblíquos da primeira pessoa do singular: me, mim, comigo. Esse episódio tem a ver com a hoje deputada federal Silvye Alves, que então era apresentadora do programa Cidade Alerta, da TV Record.

Apresentando o programa, Silvye saiu em defesa de um cantor de rua, que instalava uma caixa de som numa rotatória do Setor Jardim Goiás e esgoelava, deixando a vizinhança raivosa com o som, que assim recorria à Amma. A resposta do órgão foi rápida: notificou o cantor de rua, que não atendeu a orientação dos fiscais e assim teve sua caixa de som apreendida alguns dias depois por reincidência na geração de barulho. Esse músico, inclusive, ao cantar uma “musga” de Gusttavo Lima, foi surpreendido com a visita do próprio Gusttavo. Foi o maior fuzuê a presença da celebridade, cujas músicas têm as letras pobres, pobres, pobres de marré, marré. “Maura”, de Manoel Caneta Gomes Azul, é um poema shakespeariano perto das músicas de Gustavo. É sério, altaneiro leitor.

Silvye soltou todos os cães que podia na ação da Amma, dizendo que o órgão estava impedindo um artista de trabalhar, de ganhar o seu pão de cada dia. A apresentadora, no entanto, ignorou que o músico estava gerando poluição sonora e consequentemente impedindo o sagrado sono dos anjos aos moradores próximos à rotatória em que ele ficava. Ou seja, a pimenta não ardeu nos olhos da apresentadora, ou seja, seus ouvidos não foram perturbados. Sua manifestação não foi respaldada pela emissora; eu inclusive recebi uma ligação do diretor da emissora dizendo que o veículo não endossava o posicionamento de Silvye, que também acabou me ligando à noitinha dando a mão à palmatória.

Sinésio Dioliveira é jornalista