Peguei um pedaço da alegria do menino

07 fevereiro 2023 às 19h16

COMPARTILHAR
Ao passar na porta de um sobrado de muro bem alto e com cerca de concertina, um menino de uns 10 ou 11 anos viu na calçada inúmeros balões azuis e rosas amarrados num mesmo barbante, formando um grande círculo. Eu o vi de longe, coisa de uns duzentos metros. Certamente tinha havido alguma comemoração de aniversário de criança no sobrado, pois, ao lado dos balões, tinha uma caixa de papelão cheia de variadas cores de papéis para embrulhar guloseimas e copos descartáveis. Ele parou, passou por um instante de hesitação enquanto observava os balões, mas acabou os pegando.

Colocou os balões em volta do pescoço e foi caminhando despreocupadamente. Em seu caminhar, o menino serpenteava o corpo brincando com o arco, o que mostrava a sua alegria com o que encontrara e que provavelmente estava levando para sua casa, a qual não era como a que em cuja porta encontrou os balões. O jeito dele, principalmente por suas roupas humildes, mostrava que era um menino pobre.
Criança não tem os olhos do coração para enxergar pobreza. Pode sofrer em decorrência desta, mas sem perceber que se trata de pobreza. Só depois que cresce e se desentende como gente é que, muitas vezes, vai chorar as dores de sua infância. Certos problemas da infância podem inclusive virar demônios nos adultos, muitas vezes insepultos. As crianças, por sua inocência, conseguem brincar no meio da noite sem ver a noite. Certamente foi isso que levou escritor romântico Victor Hugo a dizer que “Ninguém conseguirá ir ao fundo de um riso de criança”.

Voltando ao menino, peguei um pedaço de sua alegria para mim, o que tornou a manhã do meu domingo mais adocicada. Parei meu carro sob uma amendoeira e fiquei o observando por alguns instantes. E nisso meu pensamento se inquietou, e eu então montei no dorso de Pégaso e, num voo rápido, cuja velocidade o magérrimo Rocinante de Quixote jamais conseguiria, cheguei à “minha infância querida, que os anos não trazem mais”. O menino Sinésio então me surgiu com suas peraltices realizadas pelas ruas do bairro em que morou em Belo Horizonte. Lembrei de sua felicidade de quando aprendeu a olhar as horas no relógio que havia no corredor da escola em que fez o primário. Ele viu as horas, mas sem enxergar o tempo a mover os ponteiros do relógio, sem enxergar que o tempo é bicho voraz, sem enxergar Cronos comendo os próprios filhos.
Como no poema de Casimiro de Abreu, as tardes da minha infância eram também fagueiras e havia sombra de bananeiras e laranjais, como também de mangueiras, abacateiros, goiabeiras, jambeiros (os da fruta amarela e deliciosamente perfumada). Até uma amoreira havia, mas desta me vinham alegria e dor: aquela das frutas roxas que eu comia e esta das varadas da minha mãe quando eu virava um capeta em forma de guri.
Certa vez as varadas de minha mãe foram mais demoradas: matei aula para ir com alguns colegas de escola tomar banho no córrego num bairro vizinho ao que eu morava. Naquela época, dizia-se que engolir peixinho vivo fazia a gente aprender a nadar. Comigo não funcionou. Até hoje não sei nadar. Hoje engulo palavras para aprender o voar como poeta Manoel de Barros, que é meu manual de passarinho. Estou em formação de plumagem.
A criança que eu fui sempre caminha comigo. Ainda vejo bichos nas nuvens. Algumas pessoas vão pela vida desacompanhadas da criança que foram. Às vezes quando estou diante do espelho, o menino que fui me estende as mãos, e então, ao estender as minhas, ele desaparece dentro do espelho e me aponta o relógio na parede, mas me diz que sempre está comigo. Apesar do piparote de realidade dado pelo relógio, eu ainda sou capaz de ver um elefante dentro da barriga de uma cobra quando grande parte dos adultos veem apenas um chapéu.
Tomara que aquele menino dos balões, ao ficar adulto, não deixe de se lembrar que um dia foi uma criança que se sentiu feliz com um punhado de balões que encontrou na rua.
Sinésio Dioliveira é jornalista