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Aonde vou minha máquina fotográfica vai comigo. Também uso o celular para fotografar e filmar, mas, em se tratando de passarinhos, que não permitem muita aproximação deles, a máquina entra em cena. Antes da minha alfabetização poética em passarinhos, que foi quando passei a versejá-los, eu já gostava deles. Há um porém: em Belo Horizonte, ainda menino, cometi uma maldade ingênua com os poetinhas da natureza: criei em gaiola um coleirinho e um trinca-ferro. Confesso que não me lembro de cenas deles cantando, porém apenas dentro das gaiolas como meus.

Sanhaço de Coqueiro | Foto de Sinésio Dioliveira

Meu pai tinha uma fabriqueta de gaiola em nossa casa. A atividade não prosperou, e o maquinário foi vendido, mas duas gaiolas (sorrateiramente) ficaram para os meus passarinhos. Meu pai nem percebeu a ausência delas, pois seu foco foi no pior: o fechamento da fabriqueta. Fato que hoje vejo como bom, pois as gaiolas são cadeias de pássaros. Há muita gente aprisionada na estupidez de engaiolar aves.

Tão logo presenciei o sanhaço-de-coqueiro numa luta ferrenha contra o espelho do retrovisor de um carro, isso no Parque Carmo Bernardes, tirei minha máquina debaixo do banco do carro e tratei de clicá-lo. A cena de conflito da ave me trouxe uma satisfação, que só é do conhecimento de quem é “aparelhado para gostar de passarinho e tem abundância de ser feliz por isso”. As bicadas furiosas da ave no espelho me lembraram de um trecho do filme “Drácula de Bram Stoker”, de Francis Ford Coppola. Num determinado momento da película, o vampiro Drácula (Gary Oldman) vê o jovem corretor de imóveis Jonathan Harker (Keanu Reeves) se barbeando com uma navalha e diz ao corretor que o espelho é a mais triste invenção humana.

Narciso, pintura de Caravaggio | Foto: Reprodução

A peleja do pássaro consigo mesmo durou alguns minutos. Ele voava e retornava à escaramuça. Ele via no espelho outro pássaro, enfim um estranho no seu pedaço. E isso resultava num combate, em que o único ferido era apenas ele. Depois desse sanhaço, já registrei outras aves nessa mesma circunstância: pica-pau-pequeno, canário-da-terra, saí-azul.

Envolvimento profundo com o espelho, na verdade, é algo perigoso. Narciso, o jovem caçador da mitologia grega, é um exemplo desse perigo. Custou-lhe a própria vida o seu amor doentio por si mesmo ao ver sua imagem refletida num lago. Na busca de possuir o objeto de seu amor, ficou dias e dias sem se alimentar e foi se definhando até morrer. Se tivesse amado a bela e jovem ninfa Eco, a deusa Nêmesis não teria lhe imposto o castigo mortal. Narciso, porém, foi transformado numa flor que tem seu nome. 

Flor Narciso | Foto: Sinésio Dioliveira

Ao contrário do sanhaço (e de outros pássaros), as pessoas, em sua maioria, não enxergam outras pessoas invadindo o seu espaço. Veem a si mesmas fisicamente melhoradas, e isso por opinião “do eu” delas dentro do espelho. Afinal, o espelho, em sua função essencial, mostra aquilo que quem o olha quer ver.

Por isso, em vez de bicadas, as pessoas beijam o espelho. Mas isso até certo momento da vida, até que um dia o espelho, cansado da pergunta “espelho, espelho meu…”, ri na cara delas, levando muitas à constatação daquilo que a poeta Cecília Meireles disse no poema “Retrato”:

“Eu não dei por esta mudança,

tão simples, tão certa, tão fácil:

 — Em que espelho ficou perdida

a minha face?”

Sinésio Dioliveira é jornalista.