O periquito sem céu
13 novembro 2025 às 13h57

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Há um ditado popular que diz que a palavra vale prata e o silêncio vale ouro. Eu queria ter sussurrado isso ao pé do ouvido do periquito-australiano. Pensei nisso no instante em que ele começou a zombar de dois pombos domésticos — certamente um casal —, que comiam mos restos de alpiste e painço caídos da sua gaiola, onde ele reinava sozinho, embora não por escolha, mas em decorrência dos acontecimentos.
A loja de venda de aves variadas, ração e outros produtos tinha três grandes gaiolas coletivas. Numa delas apenas o periquito mencionado anteriormente. Nela brincava de liberdade numa jaula de arame, fingindo que o vento de dentro o mesmo que o de fora. Os outros periquitos — os que já tinham sido vendidos — provavelmente estavam agora em casas ou apartamentos presos em gaiolas bem menores, com vista para nada. (Para mim, quem cria passarinhos em gaiolas é simplesmente um prisioneiro da ignorância.)
O periquito, vaidoso, resolveu provocar os pombos. Disse, com aquele ar de arrogância, que eles eram aves inferiores por se alimentarem das migalhas que caíam de seu pedestal de arame. Os pombos, porém, não reagiram. Continuaram comendo em silêncio, como quem sabe que discutir com arrogante é sempre uma perda de tempo, é dar pérolas a porcos. Talvez nem o tenham escutado. Eles só queriam se alimentar e depois voltar para algum telhado, onde talvez houvesse um ninho, ovos, filhotes. Diferente do periquito, eles pertenciam ao mundo. Tinham céu de sobra.

Enquanto observava a cena, lembrei-me do que disse o narrador do livro “Fernão Capelo Gaivota”, de Richard Bach: “A maioria das aves não se dá ao trabalho de aprender mais do que os rudimentos do voo”. Os pombos cabiam nessa frase: voavam o necessário, o suficiente, o útil. O periquito, por outro lado, sequer precisava mover as asas. Recebia tudo de mão beijada, como tantos que vivem alimentados pelo conforto da dependência. Fernão, a gaivota sonhadora, era o oposto. Voava por amor ao voo, por desejo de ser. Sabia que liberdade e risco são irmãos inseparáveis e que o preço de voar alto, muitas vezes, significa a solidão, mas não uma espinhosa como a daqueles que se cercam de muitas pessoas e continuam sozinhas, visto que não têm a si como companhias.
Pensei então em nós, humanos. Muitas vezes falamos de liberdade enquanto estamos encarcerados nas grades invisíveis das nossas próprias conveniências. Chamamos de estabilidade o que é, na verdade, uma forma sofisticada de cativeiro. E zombamos, como o periquito, daqueles que catam migalhas de vida, sem perceber que os “pombos” da existência são, às vezes, os únicos que ainda tocam o chão. Em “Paixão Segundo G. H.”, Clarice estourou o cativeiro da conveniência, apontando o encolhimento vagaroso do espírito para caber na moldura do hábito. Ela chamou isso de terceira perna.
De repente, os pombos levantaram voo, assustados. O motivo era o dono da loja que chegava para fechar o comércio, pois eram 18h. O som metálico da porta descendo foi o sinal de que o dia havia terminado. Os pombos ruflaram as asas e desapareceram no horizonte. O periquito ficou parado na gaiola, olhando o vazio. E logo veio a escuridão da loja fechada. Ele, coitado, tinha comida na boca, mas nenhum horizonte. Tinha canto, porém nenhum destino, pois suas asas ficaram inúteis.
Tirei uma lição do acontecimento: há muitos periquitos disfarçados de homens. Comem, falam, opinam, mas que esqueceram de voar, pois estão acomodados com a terceira perna…
Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza

