O cheiro da Capela Sistina…
12 dezembro 2025 às 15h09

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A pessoa a qual me re(firo) nesta crônica é, digamos assim, uma pessoa qualquer. Talvez não. (Na verdade, não é.) Espero que ela não seja você, altaneiro leitor. De fato, estou me referindo a gente de alma adoecida que busca a beleza do sol (e de outras coisas) apenas nas páginas dos livros. O sol é de tamanha importância para a vida na Terra que o ilustre poeta Fernando Pessoa versejou que os pensamentos de todos os filósofos e de todos os poetas estão aquém da claridade do nosso astro-rei.
Há um conselho do ilustre bardo que sempre anda comigo na prática: procuro seguir meu destino, regar minhas plantas (que são poucas, pois moro num apartamento pequeno) e amar minhas flores. Falando em flores, minha alegria mais recente foi a chegada de uma coroa-imperial. Há dez anos, ela vem florindo na minha vida, visto que também floresce dentro de mim.
Você, altaneiro leitor, há convir comigo que uma pessoa que vive tão-somente cercada de palavras, sem ver o mundo pulsando lá fora, é alguém que mora numa casa repleta de janelas pintadas. Só que janelas de olhos fechados, que não deixam o vento nem a paisagem entrarem. O poeta Jorge Luis Borges disse que o mundo sem pássaros e água é algo inimaginável para alguns, mas afirmou ser “incapaz de imaginar um mundo sem livros”. O bardo argentino declarou mais sobre sua afinidade com os livros: “Dos diversos instrumentos utilizados pelo homem, o mais espetacular é, sem dúvida o livro”. Para mim, as três coisas são inimagináveis; há outras.
Já Franz Kafka afirmou que “um livro deve ser machado que quebra o mar gelado em nós”. Nesse sentido kafkiano, o primeiro livro que me vem à mente é “Ensaios”, de Michel de Montaigne, que ganhei de presente do jornalista Euler de França Belém: meu amigo de pássaros, plantas e livros. Há outros, mas que não serão aqui mencionados para não encompridar esta crônica e afastar você, altaneiro leitor, da leitura completa desta crônica.
Livros mal lidos podem ser perigosos. Dom Quixote, o Cavaleiro da Triste Figura”, que o diga. Ele enlouqueceu lendo romances de cavalaria. Sua devoção desmedida a tais tipos de romance embaralhou sua razão, fazendo-o imaginar-se um cavaleiro andante com a tarefa de dar fim às injustiças do mundo. E isso montado num cavalo magérrimo, usando um elmo enferrujado com uma viseira de papelão, e ainda acompanhado de um escudeiro: Sancho Pança – um camponês, barrigudo e montando um burro.
Essa pessoa da minha crônica vive com um livro aberto, tão absorto nos poemas que nem percebe o coração dos poemas bater, pois os lê com olhos incautos, desconhecedores do mundão de meu Deus. Para ela, a poesia existe apenas quando alguém a empacota em estrofes. Para ela, o resto — o canto do saltitante tiziu, o brilho das gotinhas de orvalho na asa da libélula, o farfalhar das árvores em conversa com o vento, o escurecer das nuvens para o céu para derramar seu sêmen bendito sobre a terra, a abelha lambuzada de polén realizando o sexo das flores… — tudo isso é algo indecifrável para ela. É capaz de citar poetas e mais poetas de cor, linha por linha, mas se confunde diante da vida concreta: não consegue distinguir um urubu de um beija-flor.
Afinal não é a palavra que vai na frente da experiência. Pelo contrário. Paulo Freire tem razão ao dizer que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra.” Aproveitando a carona de Freire, há, no filme “Gênio Indomável”, um trecho interessante numa frase dita pelo psiquiatra Sean Maguire (Robin Williams) ao rebelde e inteligente jovem Will Hunting (Matt Damon). Este era um devorador de livros, mas lhe faltava o chão das experiências reais. Sean o confrontou com uma verdade simples e desarmante quando o jovem discorria sobre o que lera sobre a Capela Sistina: “Aposto que você não sabe me dizer qual é o cheiro da Capela Sistina. Você nunca esteve lá, parado, olhando para aquele teto magnífico”.
Essa pessoa coleciona versos como quem pendura medalhas no peito, exibindo conquistas que não lhe tenham nascido da sua vivência prática. São títulos, rótulos, cintilações, mas tudo reluzindo apenas por fora. Por dentro, há um silêncio de quarto abafado, mofado. Sua janela, aquela que realmente importa, permanece trancada do lado de dentro para fora, como se temendo que o mundo, ao entrar, possa desarrumar as prateleiras onde guarda suas certezas cheirando a naftalina.

Sinésio Dias de Oliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza
