O carrapato que sonhava ser borboleta

17 setembro 2025 às 08h51

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Não sei especificamente que pessoa seja o carrapato que vivia grudado à beira do ânus de um pato. Talvez até saiba. Na verdade, sei de muitas… Perdão pela obscenidade do termo. Confesso que não encontrei outro mais apropriado para o caso em questão. Acredito que você, altaneiro leitor, talvez conheça uma frase magistral do Marquês de Maricá, cujo nome verdadeiro era Mariano José da Fonseca. A frase, que tem pertinência com o que vou contar, está no seu livro “Máximas, Pensamentos e Reflexões”, lançado em 1846: “A ambição sujeita os homens a maior servilismo do que a fome e a pobreza”. A obra é um compilado de frases curtas decorrentes da leitura filosófica do autor sobre a sociedade, a vida, a moral. É dentro “ambição” da mencionada frase do Marquês de Maricá (que levou uma cana de três anos por suposta participação na Inconfidência Mineira) que encaixa o carrapato. Vou explicar melhor.
Os insetos, sabe você, altaneiro leitor, vivem a passear pelas páginas de alguns romances existencialistas. Em “Memórias do Subsolo”, por exemplo, de Fiódor Dostoiévski, um homem tão vazio que nem nome tinha na obra, que se dizia “mau” e “ desagradável”, tinha medo se tornar um inseto. O que seria pior para ele em seus conflitos consigo mesmo. Isso, portanto, não aconteceu com o jovem Gregor Samsa, de “Metamorfose”. Em Franz Kafka, o inevitável fez Gregor se tornar um inseto depois que sua função familiar e social se exauriu. Tornou-se um peso morto. Morreu sozinho no chão empoeirado do seu quarto. Sua família então (ufa!) retoma a vida de maneira normal, visto que o estorvo tinha findado.

Em “A Paixão Segundo G.H.”, de Clarice Lispector, a personagem G.H. – uma artista plástica com vida de dondoca e que morava numa cobertura – come uma barata. Isso ao entrar no quarto de sua empregada, após esta pedir demissão. Janair era uma mulher negra, que vivia na invisibilidade aos olhos da patroa. (Essa invisibilidade não é só de Janair.) O quarto da empregada mostrou à patroa um mundo diferente, o qual, para seu espanto existencial, estava num quarto minúsculo dentro da sua requintada cobertura. Nele havia uma barata, que foi esmagada e comida por G.H. Fato que fez a personagem descer do mundo artificial em que vivia em meio às nuvens e cair no chão duro da realidade: “Antes de entrar no quarto da empregada, quem eu era? Eu era o que os outros sempre me haviam visto ser, e assim eu me conhecia. Não sei dizer o que era”.
Moldar a nossa própria identidade dentro da maneira que as pessoas nos veem é ter uma vida oca. Temos andado na contramão do Salmo 1:1, e assim andado segundo o conselho dos ímpios, nos detido no caminho dos pecadores e assentados na roda dos escarnecedores. Enfim, sendo os que outros querem que sejamos. Essa tortuosidade não nos larga, vem de antes das pirâmides.
Vamos ao carrapato. Tenho a impressão de que estou divagando ou talvez dando ares de erudição a este texto, que nem sei como o nominar. Como já foi dito: o inseto vivia bem próximo ao ânus de um pato, numa zona fétida. O pato era o soberano do lago: havia setes patas só para ele. Suas tentativas de expulsar o incômodo à beira do seu ânus eram inúteis, pois seu bico não alcançava o parasita. Essas tentativas ocorriam diversas vezes ao dia em decorrência da coceira constante. O carrapato, no entanto, ali firme, alimentando-se do sangue alheio, mas tendo também de engolir fezes para sobreviver. Vivia numa encruzilhada: ou sujar-se inteiro, ou morrer de fome. Se mudasse de lugar, o bico do pato certamente o alcançaria. E aí viraria comida da ave.

Às vezes, quando recebia uma golfada de fezes, batia-lhe uma vontade de abandonar a sua a vida fétida e parasita. Nesses momentos, sonhava em se tornar uma borboleta e assim alçar voos, desbravar o céu, viver honestamente buscando néctar de flor em flor. Seu sonho em ser borboleta, no entanto era esmagado pela realidade, que lhe jogava na cara que ele nascera carrapato, portanto condenado a sempre sugar o sangue alheio, a viver do que o outro produz.
Naquela simbiose sinistra e grotesca, cada um cumpria seu papel: o pato, distraído, governava o lago com suas sete fêmeas; o carrapato, miúdo e invisível, sugava-lhe o sangue e obrigatoriamente tolerando fezes. Ambos viviam: um pagava com seu sangue a vida parasitária do outro.
Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza
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