Apanhador de livros em sebos e o salvador de passarinho

09 agosto 2023 às 09h03

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Não me lembro mais do nome de quem, numa resenha sobre o livro “O Apanhador no Campo de Centeio”, disse que o título levou-lhe a pensar que se tratava de uma obra de conteúdo bucólico (o título teria sido retirado de um poema do britânico Robert Burns ou de uma cantiga de crianças). Este aspecto, conforme a resenha, foi o motivo da leitura, mas que acabou gostando do que encontrou: um adolescente de 16 anos (Holden) sem norte existencial (o que não é demais para a idade), reprovado em todas as matérias do internato e em fuga da instituição por isso, mas querendo, na vida, apenas “só ser apanhador no campo de centeio”. Ou seja, ser um protetor de crianças que brincam à beira do abismo. Foi essa resenha que me levou à leitura da obra, cujo criador é o escritor norte-americano J.D. Salinger. Lançada em 1951, só fui lê-la cerca de 40 anos depois. Preciso voltar ao livro e esmiuçar mais as metáforas do romance. As metáforas têm uma voz tonitruante.
Esse fato de pensar uma coisa sobre algo e constatar ser outra me fez lembrar de um casal que entrou no cinema para assistir ao filme “Sexo, Mentiras e Videoteipes”. Os pombinhos sentaram-se na minha frente. Não foram trinta minutos de exibição, e o cara levantou-se, levantando também a namorada pelo braço, e disse: “Vamos embora que esse filme num tá com nada, é ‘paia’”. Refletindo sobre a causa da fuga do casal, concluí que a palavra “sexo” foi o aspecto afrodisíaco que levou os dois ao cinema. O cara dançou na grana dos ingressos, pois não rolou o “tchererê” nem “parapapá”: o que, no mundo da música urbaneja, é uma coisa pornográfica só.

Esta crônica (se é que posso chamá-la de tal) é fruto de alguns livros que comprei recentemente num sebo aberto na Rua 3, Centro, há poucos meses. Comprei seis. Entre os quais estava “Livro Sobre o Nada”, do poeta Manoel de Barros, que é meu mestre em poesia de passarinho. Em seus trinta anos de existência, o livro se encontra em bom estado. Li-o num galope só as suas 85 páginas. Na primeira parte, intitulada de “Arte de infantilizar formigas”, Manoel de Barros fala que “nos fundos do quintal era muito riquíssimo o nosso dessaber”. O vate diz que ser “bocó” era “o truque para fabricar brinquedos com palavras”.
Viajando na sublime bocozice manoelina, cheguei ao poema “Apanhador de Desperdícios”, no qual o poeta conta de sua necessidade da palavra para tecer seus silêncios. Mas não é qualquer palavra que serve à construção de seus silêncios: “Não gosto das palavras fatigadas para informar”. As que têm o seu respeito são as “que vivem de barriga no chão”. Assim como o poeta, os cronistas devem ser também “apanhadores de desperdícios”. Sem pôr sentido nas coisas, não há como assuntá-las e torná-las úteis à construção de silêncio e deste extrair uma boa crônica (o que não é o caso desta).

O poeta Aidenor Aires certa vez abriu a janela do seu quarto e se deparou com um filhote de bem-te-vi pendurado por um pé numa linha. A jovem ave foi iniciar o seu processo de voo e, num pedaço de linha levada por um dos seus pais para construção do ninho, que é feito de diversos materiais, ela quase fez “um pedaço do céu ficar cego” (metáfora do também poeta Gabriel Nascente para quando morre um pássaro). Sensibilizado com a agonia do filhotinho, tentando se desvencilhar da linha e emitindo sons de socorro aos pais, Aidenor ligou para o Corpo de Bombeiros, que impediu a cegueira de um pedaço do céu.

Recentemente, num encontro com o Aidenor num evento literário, falei sobre sua crônica do bem-te-vi, a qual, segundo ele, faz parte do livro “Mínimo Olhar”. Eu a li num jornal. Entrelaçando todos esses assuntos, vi em Aidenor uma certa semelhança com o propósito protetivo do adolescente Holden em relação às crianças à beira do abismo. Só que do ponto de vista prático, Aidenor voou mais alto, pois ele conseguiu salvar o filhotinho.
Vejo nos livros (não em todos, óbvio) um “apanhador no campo de centeio”. Devo a eles o fato de não ter caído no abismo, de não me contentar com a “verdade” refletida na parede da caverna… Agora me defini como apanhador de livros em sebos.
Sinésio Dioliveira é jornalista