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Vou chamar a pessoa abordada nesta crônica de Érobo (escolha que fiz dentro do significado sombrio do nome), pois não posso citar o verdadeiro. Pode me gerar problema. O que já tenho demais. Ultimamente, vale citar, ando mergulhado numa crise de identidade de dar pena: não sei se viro canarinho ou sabiá ou se continuo poeta.

Devo confessar que nunca me senti um poeta no sentido literal da palavra; sou apenas um frágil arremedo. Mas como sou o meu leitor predileto, esse arremedo me conforta e assim não silencio meus poemas. E prossigo semeando-os por aí, os quais têm caído mais entre as pedras e os espinhos do que em terra fértil…

Acho hilário aqueles que gostam de se gabar como poeta. Eles se esquecem, portanto, do que o vate Fernando Pessoa disse sobre o valor superior do brilho do sol em relação aos pensamentos de todos os filósofos e de todos os poetas. Eis um exemplo simples disso: os pensamentos desses insignes intelectuais não enxugam as asas gotejadas de orvalhado das borboletas no amanhecer do dia para que elas possam voltar à sua rotina de poeminhas alados e voar de flor em flor.

A mentira às vezes é menos desastrosa que a verdade. E outra que o nome verdadeiro de Érobo é algo secundário. Sempre que me minto por alguma necessidade considerável, me reconforto na atitude de Abraão no tempo em que ficou no Egito com Sara, sua mulher, que era muito saborosa aos olhos da carne. Ambos eram de Canaã — território que hoje abrange Israel, Cisjordânia e Gaza, Jordânia e o sul da Síria e do Líbano — e foram em busca de comida. Temendo ser assassinado por algum egípcio que crescesse os olhos em Sara, Abraão faltou com a verdade: disse que sua mulher era sua irmã. Na Bíblia não fala se algum olhar cobiçoso conseguiu saciar sua fome com a carne exuberante de Sara.

Você, altaneiro leitor, certamente já ouviu falar de Abraão. É aquele que deus (ignorando sua “onisciência” e agindo movido pela vaidade) mandou seu servo matar seu próprio filho: “Tome seu filho, seu único filho, Isaque, a quem você ama, e vá para a região de Moriá. Sacrifique-o ali como holocausto num dos montes que lhe indicarei”. Deus, vendo a obediência de Abraão, pôs fim à trama maldosa e então um carneiro foi sacrificado no lugar do coitado do Isaque, que até carregou a lenha para seu próprio sacrifício. E na maior inocência.

Na hora h de cravar a faca no filho, que já estava amarrado para o sacrifício, Abraão escutou a voz de um anjo: “Não lhe faça nada. Agora sei que você teme a Deus…” Essa vaidade de deus também ocorreu ao permitir o tinhoso esculhambar geral com a vida de Jó para provar ao capiroto que seu servo continuaria fiel mesmo que qualquer desgraça lhe ocorresse. Toda a riqueza de Jó foi destruída, até seus sete filhos o deus presunçoso permitiu que o chifrudo matasse. E Jó sempre fiel. E o pé-de-bode deu mais uma xavecada em deus e conseguiu mais uma sacanagem: “… feriu Jó de uma chaga maligna, desde a planta do pé até o alto da cabeça”, mas ele permaneceu reto e temente a deus.

Sobre o tal Érobo, quem não o é sempre conhece alguém que é. Dias atrás, encontrei um cidadão com o qual trabalhei há um bom tempo atrás. Na verdade, ele chegou bem depois de mim. Entrou de salto alto, haja vista que fora indicado por um político pistolão. Se, por vaidade, até a lavadeira das cuecas do rei se sente importante, Érobo nadou de braçada no lodo fétido da soberba. O tolo, embriagado de vaidade, ignorou que estava ocupando um cargo que fora ocupado por outro e que o mesmo haveria de lhe ocorrer.

Involuntariamente Érobo foi obrigado a descer do salto. Foi derrubado, melhor dizendo. Seu padrinho político, para seu azar, deixou de comer no mesmo cocho que o governo, e este então, num gesto de vindita ao pistolão, meteu a caneta sem dó no pescoço dos apadrinhados do deputado, ou seja, mandou-os para o olho da rua. De repente, não mais que repente, então fez-se pranto aquele riso brilhante de antes de quando era um diretor de nariz empinado andando pelos corredores. Sua empolgação com o melado do cargo acabou lhe deixando lambuzado. Acabou-se o que era doce. Não enxergava seus colegas de trabalho hierarquicamente abaixo dele. Só via os graúdos.

Comprou um carro novo muito rápido e até postou foto em suas redes sociais, simulando que o dirigia, rindo de orelha a orelha. Na foto, entretanto, seu riso era verdadeiro como uma cédula de 500 reais. Grande tolice essa de exibir em vitrine a felicidade, a qual muitas vezes não se tem. Essa alegria pavoneada de muitos me transporta ao homem que parodiava o sol e associava-se à lua ao acender os lampiões das ruas, conforme consta no poema “O Acendedor de Lampiões”, de ilustre Jorge de Lima. Os versos falam que o tal homem “talvez não tenha luz na choupana em que habita”.

Ao me ver, isso no restaurante em que nos encontramos, Érobo fez cara de paisagem, desviando seus olhos de mim. Mas, resignado que sou, felizmente não perdi a fome por causa disso. A feijoada estava deliciosa e a cerveja bem gelada, sem se falar nos bons amigos que estavam na minha mesa. Pobre Érobo, que ele trate de ter uma conversa bem séria com um vagalume o mais rápido possível…

Sinésio Dioliveira é jornalista