A espada oculta sob as asas do amor

08 agosto 2025 às 15h06

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Encontrei um amigo que há tempos eu não via. Ele estava num bar. Fui à sua mesa cumprimentá-lo. Ele já estava um tanto embalado dionisiacamente. Estranhei seu estado, pois, na época em que nos encontrávamos com mais frequência para jogar conversa fora, ele não passava de alguns poucos copos de cerveja. Ele, que não tinha o hábito de abraçar ninguém nos cumprimentos, abraçou-me afetuosamente. Confesso que fiquei meio desconcertado diante dos olhares curiosos assistindo à cena de euforia alcoólica do meu amigo.
Senti que havia algo de errado. Batata! Numa conversa rápida, se abriu e expôs a causa de seu pileque. Me contou que seu coração estava em frangalho. Por trás disso, uma tal Marcela que conheceu em Caldas Novas numa daquelas muvucas de deixar o diabo babando de êxtase. Pelo que extraí do fato, a moça deu-lhe uma tunda de deixar uma marca profunda em seu corpo. Senti, no seu relato, que sua Marcela tinha um quê da Marcela de “Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.

| Foto: Reprodução
A machadiana amou Brás Cubas durante quinze meses e onze contos de réis; a do meu amigo amou-o durante seis meses e muitos reais gastos com presentes, restaurantes, motéis. Gastou até o que não tinha. Chegou a apresentá-la a seus familiares. Em seu lamento de amor, falou de algumas mensagens anônimas que recebera, dizendo que sua namorada era prostituta em um puteiro chique da cidade.
Depois de algum tempo à sua mesa, ouvindo seus gemidos de dores de amor, ele me pediu para acompanhá-lo a um determinado lugar, onde encontraria uma amiga. Aceitei, mas condicionei que seu carro fosse levado para sua casa por alguém que estava sua mesa, e que fôssemos no meu, pois eu não estava bebendo. Afinal, sua cabeça não se encontrava legal naquele instante, e junto a isso o fato de ele estar embriagado. Era um risco. Felizmente correu tudo bem.
E lá fui eu, seguindo suas orientações: “vira aqui, vira ali, segue em frente”. Já bem próximo do local é que fiquei sabendo do nosso destino: um sofisticado lupanar na saída de São Paulo. Empaquei na porta, alegando que eu não estava a fim de transar. “Também não vim aqui pra transar, a Marcela tá aí, vou dar um flagra nela”, disse ele numa voz meio mole. Acordamos que só entraríamos para não ficar muito tempo, mas o suficiente para que sua namorada fosse ou não flagrada com a boca na botija…
Nos sentamos mais no fundo. Ele pediu um uísque, eu um suco de laranja. Foi bebericando o uísque, e seus olhos a percorrerem o espaço à procura de “sua” Marcela. Como não conhecia sua namorada, fiquei observando o ritual do lugar. Foi aí que vi uma morena de fazer Zeus descer do Olimpo para uma ceia carnal. Ela dançava no palco no centro de um grande salão com luzes de cores variadas. Estava apenas com uma minúscula calcinha vermelha, em cuja frente tinha uma borboleta branca estampada. À volta de sua calcinha havia algumas cédulas de 50 e 100 reais colocadas pelos homens que a devoravam com olhos escorrendo esperma. O que não era o meu caso.
Vi que os olhos do meu amigo ficaram fixos e seu semblante mudou. Era a Marcela. Usava uma bermuda jeans minúscula e uma pequena blusa branca estampada com maçãs vermelhas e verdes que deixava seu umbigo com um piercing de coraçãozinho à mostra. Pensei que ele teria um surto de violência, mas me enganei. Ainda bem! Aproximou-se dela, todo moído por dentro, para mostrar que enfim descobrira sua vida oculta: “As mensagens anônimas que recebi não eram de ‘gente fuxiqueira’ como você disse.” A moça simplesmente ficou muda e com olhar assustado. Nada disse. Não passou disso. Ufa! Voltamos à nossa mesa e minutos depois fomos embora.
No caminho de volta para deixá-lo em sua casa, meu amigo explodiu novamente em lágrimas e lamentos, que me levaram a Khalil Gibran em sua definição metafórica do amor: “E quando ele vos envolver com suas asas, cedei-lhe. / Embora a espada oculta na sua plumagem possa ferir-vos.” Parafraseando Drummond, o coração continua para aqueles que não são insanos ao lidar com os ferimentos de amor. O coração do meu amigo continou…
Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza
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