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Tentei buscar um título mais polido para esta crônica, que tem como motivo a atitude cristalinamente corporativista da Câmara dos Deputados relacionada à famosa PEC da Blindagem, que é uma espécie de ressuscitação do Artigo 53 da Constituição de 88, que não permitia que os eminentes parlamentares (eleitos pelo voto do povo, vale frisar) fossem processados criminalmente pelo Supremo Tribunal Federal sem a prévia licença do Senado e da Câmara dos Deputados.

Com a Emenda Constitucional 35/2001, foi eliminada a necessidade de permissão do Senado ou da Câmara para processar e até prender parlamentares em caso de crime inafiançável, cabendo, portanto, à Casa a permissão de interromper o processo. O essencial permanece: os direitos materiais dos parlamentares, que lhes assegura na emissão de suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato. Há porém: sem que haja nexo entre a opinião do parlamentar e sua função enquanto tal, o bicho pega, ou seja, pode enfrentar sanção cível ou penal.

Crédito: Reprodução

Na esdrúxula PEC, os nossos eminentes deputados puxam, escancaradamente, a brasa apenas para sua sardinha; num gesto muito longe do sentido de lhes assegurar o pleno exercício de integrantes do poder legislativo, o qual configura o poder-símbolo do regime democrático representativo. Metaforicamente, arrisco a dizer que a leitura desse fato é muito nítida: esses insignes deputados tão-somente buscam poupar o rabo de palha do fogo e não lhes assegurar o exercício sério da função de representantes populares em conformidade com a Constituição. Parlamentar que não está envolvido em mutreta não tem por que levantar bandeira para essa PEC absurda.

Simplesmente fizeram merda os 344 deputados que votaram favoravelmente. E é nesse contexto que, felizmente, entrou o Senado como papel higiênico. Os deputados que buscam essa blindagem se apequenam dentro do cumprimento da democracia. Se eles são representantes eleitos pelo povo, do qual emana todo o poder, não podem de modo algum legislar em causa própria. Presidente da CCJ, o senador Otto Alencar (PSD-BA) acerta na(s) mosca(s) ao dizer que tal PEC(aminosa) significa deixar “as portas abertas para a transformação do Legislativo em abrigo seguro para criminosos de todos os tipos”.

Pablo Escobar, o narcotraficante colombiano e capo do Cartel de Medellín, foi deputado por dois anos. Sua perversidade era monstruosa: derrubou um Boeing matando 107 pessoas da aeronave e mais três no chão com a queda do avião. Explodiu prédios. Acabou sendo morto numa operação e foi para o inferno com quatro tiros. Por aqui, na década de 90, também tivemos um criminoso dentro da Câmara dos Deputados: Hildebrando Pascoal, mais conhecido como deputado da motosserra.

Ele, que foi coronel da PM do Acre, ordenou que seus asseclas arrancassem braços, pernas e pênis de um homem, mas antes seus pistoleiros já tinham matado o filho de 13 anos do homem esquartejado pelo fato de o menino não saber onde o pai estava. Em sua vasta ficha criminal, estavam homicídios, sequestros, tráfico internacional de drogas, formação de quadrilha, crimes eleitorais e financeiros. Era um fiozinho de ouro. Foi eleito em 1998 a deputado federal pelo PFL, aí o partido virou Democratas, que fundiu no União Brasil.

Em “Do Contrato Social”, livro do filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau publicado em 1762, o autor diz, em outras palavras, que as leis, para serem legítimas, precisam brotar da vontade coletiva do povo. A recente manifestação popular do dia 21 de setembro é a prova explícita de que não existe vontade coletiva do povo em relação à aprovação da PEC da Blindagem.

Falando em povo, em nossa Constituição, consta, em seu Artigo 1º – parágrafo único -, “que todo poder emana do povo e, em seu nome, é exercido”. Os deputados defensores da blindagem —defensores do próprio umbigo — estão trocando o verbo emanar por mamar. Falando em mamar, o Congresso brasileiro é o segundo mais caro do mundo: cada um dos 513 deputados e 81 senadores abocanham anualmente quase R$ 25 milhões de reais, o que envolve salários, benefícios, penduricalhos etc e tal… É muita grana, altaneiro leitor, gasta sem resultados sociais à altura do que o povo lhes paga. Cabe aqui trazer uma frase do inescrupuloso e ganancioso deputado Justo Veríssimo (personagem do saudoso e genial humorista Chico Anysio): “O povo que se exploda”.

Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza

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