O filósofo John Gray sugere que que a era moderna, em termos de superstições, não difere do período medieval

Quanto mais conheço da história da humanidade, mais tenho receio dos homens com poder. O Leviatã é um monstro. Ocorreu-me esta ideia ao ler o livro Missa Negra — Religião Apocalíptica e o Fim das Utopias (Record, 352 páginas, tradução de Clóvis Marques), de John Gray. O filósofo britânico é autor de diversos livros, professor da London School of Economics e colunista do jornal britânico “The Guardian”. Sua obra analisa os conflitos mais destrutivos dos últimos séculos e chega à conclusão de que as religiões políticas exploram o mito do Apocalipse como uma crença em um evento que mudaria o mundo e levaria ao fim da história e de todos os conflitos.

A política moderna é um capítulo na história da religião influenciada pela fé. Vivemos sob os escombros de projetos utópicos, nazismo e comunismo, que se tornaram verdadeiras religiões. Com o fim dessas ideologias sucedem-se teorias neoconservadoras, que seria uma democracia universal ou o livre mercado global. Uma versão de crenças apocalípticas. Jesus e seus seguidores foram os primeiros a acreditar estar vivendo no fim dos tempos, que seria o fim de todos os males. Desde então, as visões apocalípticas vêm rondando a vida ocidental.

Na Idade Média, a Europa foi sacudida com a crença de que a história estava chegando ao fim e um novo mundo surgiria. Modernos revolucionários — jacobinos, bolcheviques, iluministas —, crentes de que os crimes poderiam ficar para trás, são um subproduto do cristianismo. Os movimentos revolucionários modernos são uma continuação da religião por outros meios.

Não só os revolucionários têm se apegado a versões seculares de crenças religiosas. O mesmo fazem os humanistas liberais. Os mitos atendem à necessidade humana de significado. Projetos utópicos como a tentativa americana de exportar a democracia para o Oriente Médio e o resto do mundo. Quando o projeto de democracia universal fracassou no Iraque, o utopismo sofreu um rude golpe, mas a política e a guerra não deixaram de ser veículos para o mito. Com a morte da Utopia, a religião apocalíptica voltou a ser um poder de pleno direito.

John Gray: filósofo britânico | Foto: Reprodução
Política apocalíptica

Com frequência tem se observado que, para os seus seguidores, o comunismo ofereceu muitas das funções de uma religião, segundo ex-comunistas desiludidos, refletidos no famoso ensaio “The God that failed”, de Arthur Koestler.

Na linguagem comum, apocalíptico denota um acontecimento catastrófico, que, para os eleitos, significa a salvação. Jesus e seus discípulos acreditavam que o mundo estava destinado a uma iminente destruição, para que um novo mundo, perfeito, pudesse surgir. Foi o cristianismo que introduziu a crença de que a história humana é um processo teológico. O antigo judaísmo não continha a ideia de um fim. Por trás de todas essas concepções está a crença de que a história não gira em torno de causas, mas de finalidade — a salvação da humanidade. Os ensinamentos de Jesus apoiavam-se na crença de que a humanidade estava em seus últimos dias.

Jesus Cristo acreditava que o mundo estava destinado a uma iminente destruição | Imagem: Reprodução

Foi São Paulo que transformou o movimento liderado por Jesus de uma seita judaica dissidente em uma religião universal e, portanto, permanente.

No século XII, Joaquim de Flora — um abade cirterciense — transformou a doutrina cristã da Trindade numa filosofia da história em que a humanidade ascendia em três estágios. A do Pai, do Filho e a do Espírito — que seria esta uma época de fraternidade universal. Esta teoria teve profundo impacto no pensamento secular. A profecia de Joaquim deu ao Estado nazista o nome de Terceiro Reich — a fase ideal.

Caberia supor que crenças místicas não tivessem grande impacto na prática, mas tiveram. Na cidade de Munster, Alemanha, deu origem a uma experiência de comunismo, na Idade Média. No início de 1534, os anabatistas (movimento empenhado nos ensinamentos do cristianismo primitivo) tomaram a prefeitura e o mercado de Munster. Anunciando que o resto do planeta seria destruído antes da Páscoa, mas Munster seria salva, tornando-se a Nova Jerusalém. Em consequência: católicos e luteranos foram expulsos; todos os livros, exceto a Bíblia, foram queimados; todo dinheiro, ouro e prata foram confiscados; as portas das casas sempre abertas; a propriedade privada proibida. Esse regime puritano durou pouco. Fracassou. Depois do estabelecimento da nova ordem, tiveram início as execuções. Na sequência a cidade foi sitiada por forças leais à Igreja, o que levou a população à fome.

A política moderna tem sido movida pela crença de que a humanidade pode livrar-se dos males pela força do conhecimento. Essa crença escora as experiências de utopismo revolucionário que definiram os dois últimos séculos.

O nascimento da utopia

A utopia sempre foi uma ideia revolucionária. O sonho de uma sociedade perfeita, um Paraíso perdido e não como o vislumbre de um futuro a ser alcançado. Platão situou a sua República ideal numa Era de Ouro anterior à história. Thomas More localizou a Utopia em uma terra distante. John Humphrey Noyes criou a comunidade de Oneida, no Estado de Nova York. Robert Owen comprou a cidade de Harmony para aplicar a ideia da vida em comunidade, a New Harmony. Opondo-se às inclinações naturais elas fracassaram em apenas uma geração.

A busca de uma condição de harmonia define o pensamento utópico, revelando essencial desligamento da realidade. O conflito é uma característica universal da vida humana. É da nossa natureza desejar coisas incompatíveis: emoções e vida tranquila, liberdade e segurança, verdade e uma imagem que seja lisonjeira para seu senso da própria importância. Como escreveu o filósofo David Hume: “Qualquer plano de governo que pressuponha uma grande reforma nos hábitos da humanidade é com toda evidência imaginário”.

A visão de Karl Marx sobre a alternativa ao capitalismo é que é utópica. Embora tivesse entendido melhor o capitalismo que a maioria dos economistas, sua concepção do comunismo era perigosamente inviável. O planejamento central estava fadado ao fracasso: ninguém é bom o suficiente para planejar e nem o é para governar uma economia moderna.

Comunismo soviético: revolução milenarista

Segundo o filósofo Bertrand Russell, o bolchevismo como fenômeno social deve ser considerado uma religião, e não um movimento político comum. Lênin invoca, em seu livro “Estado e Revolução”, a Comuna de Paris como modelo de governo revolucionário para a Rússia e o mundo. No futuro, não haveria mais Estado. Seriam abolidas as forças militares-policiais permanentes. Os servidores públicos não teriam regalias. Afirmava que a ditadura do proletariado não necessitaria de regras de qualquer natureza, diretamente baseada na força, pois o novo regime existiria para servi-las.

Lênin (com Stálin): o líder bolchevique era obcecado com a violência da Revolução Francesa e da Comuna de Paris | Foto: Reprodução

Lênin não imaginou que a instauração dessa nova ordem pudesse dar-se sem lutas. De 1917 a 1923, a Checa, polícia política russa, promoveu 200.000 execuções. Ao empregar o terror como instrumento de engenharia social, os bolcheviques deram continuidade deliberadamente à tradição jacobina. Lênin era obcecado com dois precedentes históricos: os jacobinos, derrotados por não terem guilhotinado o bastante, e a Comuna de Paris, por não ter fuzilado o bastante.

Os bolcheviques eram praticantes daquilo que Karl Popper definia como “engenharia social utópica”, que tem como objetivo reconstruir a sociedade promovendo de uma vez só a mudança de toda a estrutura. A sociedade deve ser destruída para que se crie um outro modo de vida.

O nazismo e o Iluminismo

Os crimes do nazismo não podem ser explicados como manifestações do atraso. O Iluminismo desempenhou papel indispensável no desenvolvimento do nazismo. Os elos entre valores liberais e o Iluminismo são mais tênues do que imaginam. Voltaire via o Estado liberal como apenas um meio de alcançar o progresso humano. Para ele os valores liberais são úteis quando promovem o progresso e irrelevantes quando não o fazem.

Para Marx, o progresso era concebido em termos que se aplicavam à humanidade como um todo, enquanto a maioria dos iluministas adeptos do “racismo científico” deixava de fora a maioria dos indivíduos da espécie. Os pensadores iluministas franceses positivistas foram os mais influentes e eram rematados antiliberais.

Embora remonte à filosofia grega clássica, a crença na inata desigualdade entre os homens foi revivida no Iluminismo, quando começou a adquirir algumas conotações do racismo. Ao se perguntar qual seria o destino de “magotes de gente negra, amarela e mulata que não alcança as exigências da eficiência”, H. G. Wells respondeu: “Bem, o mundo não é uma casa de caridade”. Ideias desta ordem eram lugar-comum entre os pensadores progressistas da época. As políticas nazistas de extermínio não saíram do nada. Muitos compartilhavam o apreço nazista pela “ciência racial”. Os nazistas destacavam-se pelo extremismo das suas ambições.

O terror e a tradição ocidental

O nazismo, o comunismo e o islamismo radical são produtos do Ocidente. Segundo Olivier Roy, a verdadeira gênese da violência da Al-Qaeda tem a ver com a tradição da revolta individual. É mais pessimista em nome de um ideal fugidio do que a concepção corânica do martírio. Nessa maneira de encarar a história, o islã está em sintonia com o cristianismo e os credos seculares do Ocidente moderno. O cristianismo e o islã são fés militantes que pretendem converter toda a humanidade.

Hoje o Ocidente define-se em termos de democracia liberal e direitos humanos, como se os movimentos totalitários do passado não fizessem parte do Ocidente. Os crimes do século XX não eram inevitáveis. Os assassinatos em massa não têm nada de especificamente ocidental. O que caracteriza o Ocidente moderno é a crença de que a violência pode salvar o mundo. O terrorismo totalitário do século passado fazia parte de um projeto de tomar de assalto a história. O século XXI começou com mais uma tentativa desse projeto, assumindo a direita o lugar da esquerda. Como veículo de mudança revolucionária.

Utopia e ascensão e queda do neoliberalismo

A política dos governos ocidentais começou a ser determinada no fim da década de 1980 pela crença de que um único sistema político e econômico estava sendo criado em todo o mundo. É instrutivo lembrar que se tem alimentado e expectativa de que essa convergência assuma muitas formas incompatíveis. Para Marx ela levaria ao comunismo; Herbert Spencer e Hayek, ao livre mercado global; Comte à tecnocracia universal; e Francis Fukuyama ao “capitalismo democrático global”. Nenhuma dessas etapas foi alcançada.

O neoliberalismo abrange várias escolas de pensamento, que, no entanto, têm em comum certas convicções fundamentais. Os neoliberais consideram a principal condição da liberdade individual o livre mercado. O alcance da ação governamental deve ser estritamente limitado.

Tony Blair. ex-primeiro-ministro da Inglaterra, e George W. Bush, ex-presidente dos Estados Unidos | Foto: Reprodução

O neoconservadorismo não é a versão mais recente do conservadorismo. Surge do novo partido criado pelo ex-primeiro-ministro Tony Blair. O fato mais importante foi o novo consenso de Margaret Thatcher, que foi um ponto fraco do seu partido. Durante todo tempo os conservadores funcionam como freios ao coletivismo. O partido existia para se opor não só ao socialismo, como também à social-democracia. Ao desmantelar o consenso trabalhista, Thatcher acabou com o principal motivo da existência do Partido Conservador. A adesão de Blair às crenças neoliberais dava continuidade à política de Thatcher.

Os contextos políticos em que Blair e Georg W. Bush chegaram ao poder não poderiam ser mais diferentes. Blair não era capaz de mobilizar em seu apoio a fé religiosa popular arregimentada por Bush. Mas havia uma afinidade entre eles. A mistura da religiosidade rasa, mas intensa, com uma fé militante no progresso humano era comum entre os dois. Blair e Bush surgiram no fim de um período de ascensão do utopismo na política ocidental. Ambos praticavam um estilo missionário de política, tendo como meta salvar a humanidade.

Da colônia puritana à nação redentora e os possuídos

Entre as ideias abraçadas pelos fundadores da nação americana estava a teoria política de John Locke, uma teoria do governo como um contrato social destinado a proteger os direitos naturais. Os Estados Unidos foram fundados na base de uma ideologia, e neste fato residiria sua novidade.

Nem todos os fundadores seguiam essa religião. Os federalistas pertencem a uma tradição antiutopia americana, mas nunca chegaram a tomar o lugar da ideia de missa universal com que foi fundada a colônia americana. Como reconhecia o francês Alexis de Tocqueville: “O excepcionalismo americano é um fenômeno religioso”.

Alexis de Tocqueville: “O excepcionalismo americano é um fenômeno religioso” | Imagem: Reprodução

O neoconservadorismo é uma postura das políticas públicas americanas, mas também um conjunto de ideias. A rede neoconservadora que exerceu profunda influência em George W. Bush é um subproduto da Guerra Fria. Muitos dos seus erros decorrem de hábitos mentais adquiridos naquela época em condições diferentes das que hoje prevalecem.

A história não é uma ciência, mas entre a boa história e a má existe uma diferença que reflete a maneira como são usadas as formas concretas. Há também a diferença entre formas de pensamento baseadas no conhecimento histórico e as carentes de qualquer senso histórico. O pensador neoconservador enquadra-se nesta última categoria e muitos erros cometidos resultam dessa deliberada ignorância do passado. A ideia neoconservadora de que é possível entender a violência terrorista lendo os romances de Dostoiévski (como os “Demônios”) é curiosamente irônica.

Como escreveu o analista neoconservador Michel Leeden depois dos atentados de 11 de setembro: “A guerra ao terrorismo e a revolução democrática global se confundem. Não devemos alimentar dúvidas da nossa capacidade de destruir tiranias. É o que sabemos fazer melhor. É um talento natural. A destruição criativa é para nós uma segunda natureza”. Bakunin, anarquista russo, disse: “A paixão pela destruição é uma paixão criativa”. Esta patologia é exemplificada pelos ideólogos de Bush. Os neoconservadores adotaram o recurso à força como meio de alcançar a Utopia.

Missionários armados e experiência do Iraque

Para Robespierre a ideia mais extravagante que pode surgir na cabeça de um pensador político seria acreditar que basta a um povo entrar, munido de armas, em terras estrangeiras para que as suas leis e constituição forçadas sejam adotadas.

Até certo ponto, as origens da guerra no Iraque sempre serão obscuras. Ao intentar a democratização forçada do Oriente Médio, Bush acreditou que o resultado seriam regimes iguais aos dos Estados Unidos. Ignorou a probabilidade de que fossem democracias iliberais, que repousam na crença de que o bem comum fala por si mesmo. A crença de que o terrorismo pode ser erradicado também é ilusória.

O objetivo da invasão era garantir o abastecimento energético americano e, ao mesmo tempo, transformar o Iraque num modelo de democracia liberal para o resto da região. O Iraque sempre foi um Estado heterogêneo, com profundas divisões internas. Saddam conseguia manter o Iraque coeso. A sua queda emancipou os diversos grupos, deixando o Estado iraquiano sem legitimidade. O sistema imaginado manifestava uma confiança em constituições escritas que não se coadunavam com a história dos Estados Unidos, que só alcançaram a unidade nacional por meio da Guerra Civil, na década de 1860.

Liberalismo missionário, imperialismo liberal e guerra ao terrorismo

O humanitário, como missionário, segundo George Santayana, é frequentemente um inimigo do povo que pretende amparar, pois não tem suficiente imaginação para solidarizar-se com as suas reais necessidades nem bastante humildade para respeitá-las. Arrogância, fanatismo, intrusão e imperialismo podem, então, fantasiar-se de filantropia.

Os liberais insistem em que a legitimidade de um governo depende do respeito que manifesta pelos direitos dos cidadãos. Quando não dá provas concretas neste sentido, ele pode ser combatido e derrubado. Para muitos liberais a “guerra ao terrorismo” veio tomar o lugar da Guerra Fria. Mas as diferenças são consideráveis.

Faz parte do discurso ocidental ligar o terrorismo à cultura árabe e ao culto islâmico do martírio. Todavia, o Islã é uma religião, não uma cultura. A maioria dos que vivem no “mundo islâmico” não é de árabes. O terrorismo na Indonésia não pode ser explicado pela atribuição de determinadas atitudes dos árabes. Muitas manifestações do terrorismo são comparáveis a outras formas de guerra. Falar de choque de civilizações não tem sentido. Foram os Tigres do Tamil, organização marxista-leninista no Sri Lanka, que inauguraram a técnica do homem-bomba. O primeiro atentado suicida em Israel foi cometido em 1972 por um integrante japonês da Facção do Exército Vermelho.

O perigo do terrorismo islâmico é real, mas declarar guerra ao mundo não é a melhor maneira de enfrentá-lo.

Pós-Apocalipse e depois do secularismo

A fé na Utopia, que levou à morte de tantos nos séculos que se seguiram à Revolução Francesa, está morta. O ciclo em que a política mundial era dominada por formas seculares do mito apocalíptico chegou ao fim. Numa inversão histórica, a religião dos velhos tempos ressurgiu no cerne do conflito global.

As ideologias políticas dos últimos duzentos anos foram veículos para um mito da salvação na história que vem a ser o mais ambíguo legado do cristianismo à humanidade.

O mundo moderno começou com guerras de religião. Na guerra dos Trinta Anos, entre católicos e protestantes, morreu um terço da população.

O filósofo Thomas Hobbes escreveu que, num estado natural, em que não há governo, não há “vida cômoda”. Sem o poder do governo, os seres humanos são compelidos a travar uma “guerra de todos contra todos”. Ainda hoje tem profunda ressonância na compreensão dos riscos da anarquia. Os pensadores liberais ainda consideram o poder incontrastado do Estado como a maior ameaça à liberdade humana.

John Gray falha, porém, não distinguir o liberalismo, que é uma filosofia de vida baseada no respeito à liberdade individual, das atuais práticas de políticas intervencionistas ocidentais — incompatíveis com o ideário liberal. Não foi em nome do liberalismo que os Estados Unidos invadiram o Iraque, mas por interesses materiais.

O liberalismo costuma ser considerado uma doutrina cética, o que não faz justiça ao fervor missionário com que tem sido promovido. A ferocidade com que as sociedades liberais tratam os seus inimigos.

As sociedades liberais merecem ser defendidas, pois encarnam um tipo de vida civilizada no qual convicções opostas podem coexistir em paz.

O liberalismo tem se mostrado tão utópico quanto outras filosofias na postulação de uma forma de harmonia final como meta atingível. Os realistas reconhecem que os Estados estão fadados a situar aqueles que consideram os seus interesses vitais acima de considerações mais universais (como a invasão do Iraque).

A narrativa é uma necessidade humana. Nos últimos dois séculos, a história dominante tem sido o progresso humano. Os riscos dessa necessidade de uma narrativa humana globalmente são evidentes. Sentir-se alvo de uma conspiração global, como faziam os nazistas, pode não parecer um estado de espírito positivo, mas elimina o problema de falta de significado.

Nas filosofias iluministas que modelaram os dois últimos séculos, a religião era um aspecto secundário, fadado a desaparecer, quando as causas fossem sanadas. Erradicada a pobreza e universalizada a educação, sendo superada as desigualdades sociais, a religião terá a mesma importância de um hobby. Além dos aspectos sócio-políticos, as religiões expressam necessidade humanas que nenhuma mudança social haverá de eliminar: por exemplo, a necessidade de aceitar o que não tem remédio e conferir significado aos acasos da vida. Assim como não podem elidir desejos sexuais, lúdicos ou violentos, os seres humanos nunca deixarão de ser religiosos.

As religiões seculares dos últimos dois séculos, imaginando que o ciclo da anarquia e da tirania podia ser encerrado, conseguiram apenas torná-lo mais violento. A era moderna não tem sido uma época de menos superstição do que o período medieval, e sob certos aspectos mais ainda. Guerras tão brutais quanto das primícias da modernidade estão sendo travadas contra um pano de fundo de crescente conhecimento e poder. Interagindo com a luta pelos recursos naturais, a violência da fé parece fadada a determinar o rumo do século 21.

A política moderna é um capítulo na história das religiões. Os grandes movimentos revolucionários — que tanto influenciaram a história dos últimos séculos — foram episódios da história da fé: momentos do longo processo de dissolução do cristianismo e ascensão da moderna religião política. O mundo em que vivemos está coberto de escombros de projetos utópicos, os quais embora estruturados em projetos seculares que negavam a verdade da religião, constituem de fato veículos para os mitos religiosos.