A cidade ficou oca de alma

15 agosto 2025 às 08h34

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Tudo ia bem normal na pequena cidade. As pessoas tinham tempo para ficar na janela, tinham tempo para conversar. E até tempo para procurar bichos e coisas nas nuvens, algo que é mais realizado por crianças, mas nessa cidade até os adultos tinham esse hábito. Os cachorros até podiam dormir sossegados no meio da rua sem risco de morrer atropelados. Era um tempo em que se amarrava cachorro com linguiça. Por lá, os ponteiros do relógio não se moviam com a pressa dos relógios das grandes cidades; as quais, segundo Alberto Caeiro, “fecham a vista à chave, escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe do céu…”
Numa manhã ensolarada, com os passarinhos cantando felizes a canção única que cada espécie sabe cantar, de repente o sol foi embora e não se ouviu nenhum pio de ave. Fez-se um silêncio sinistro por alguns instantes. Nuvens escuras surgiram inesperadamente, cobriram toda a cidade, e então veio muita chuva e muitos raios. Com os trovões rugindo assustadoramente, após os clarões dos relâmpagos, os cães, a maioria deles, se esconderam debaixo das camas e tremiam mais que vara verde. No meio desse temporal todo, chegou um caminhão enorme na cidade, que estacionou bem no meio da praça, próximo a um lote baldio ao lado da paróquia, que era a dona do lote, que sempre era alugado para eventos diversos.
Era nesse lote que os circos que apareciam na cidade se instalavam. O que era motivo de muita alegria para os moradores. A quantidade de chuva e raios fez muita gente rezar por medo de o mundo acabar. Afinal, não havia nenhuma arca por lá para salvar as pessoas e os bichos. As pessoas que não tinham hábito rezar foram as que mais suplicaram por proteção divina. E isso com orações ruidosas quase à altura do rugido dos trovões. A chuva parou de repente. Então os homens do caminhão desceram do veículo. Estavam vestidos com um macacão cor laranja. Uma cor tão forte de fazer os olhos doerem.
Os homens começaram a descarregar um punhado de barras de ferro. Era ferro e mais ferro e aquele barulho deles encostando uns nos outros, o que acabou atraindo a atenção dos moradores, que ficaram de longe observando a atividade dos forasteiros. Alguns, mais assustados, nem saíram de casa, ficaram espiando a cena pelas janelas entreabertas ou pelo buraco das portas. A meninada não, chegou bem perto, a ponto de se misturar aos homens, mesmo os pais proibindo a aproximação. Quem já foi criança sabe como criança é. Alguns acabaram levando tunda dos pais pela desobediência.
Esses homens usavam uma pequena caixa de vidro e metal do tamanho da palma da mão. Praticamente não se falavam entre si, apenas com as caixas. Foram emendando ferro com ferro e, em treze meses, levantaram uma grande árvore de aço dentro da cidade, que ultrapassou as nuvens. Esse trabalho era realizado até altas horas da noite. E o povo, sem sono devido ao barulho, ficava observando as faíscas de fogo decorrentes das soldas.
O menino mais acapetado da cidade foi brincar de Tarzan na árvore de aço numa tarde de domingo quando os homens não estavam no local; tinham ido se divertir com algumas meninas da cidade na beira do rio que cortava a cidade. O menino subiu na grimpa, escorregou ao usar as mãos como alto-falante para dar o grito lendário do Tarzam, morreu na queda. Como sangue vale menos que ouro, os homens entregaram o morto à família e prosseguiram com seu trabalho. Após esse acidente, fizeram uma cerca de arame farpado com muitos fios para impedir a entrada de meninos. Depois de concluída a árvore de aço gigantesca, veio outro caminhão repleto de caixinhas de vidro. Depois os homens saíram de casa em casa vendendo essas caixinhas. Venderam até para cachorro. Mas, em vez das roupas laranjadas, usavam terno.
A partir de então, as pessoas da cidade pararam de se falar, fecharam as janelas. Enlouqueceram de vez: puseram a conversar com essas caixinhas e deixaram de procurar bichos nas nuvens. Os cachorros que dormiam na rua morreram atropelados por distração dos motoristas com luz das caixinhas. A criançada, que tinha o hábito de brincar de finca, bolinha de gude, pipa, carrinho de rolimã, bete, esqueceu desses brinquedos como se nunca tivessem existido. Passavam praticamente o dia inteiro envolvidos com essas caixinhas de vidro. Pararam de pedir a bênção aos pais e pouco conversavam com eles, que também estavam encantados com o brilho das caixinhas de vidro e nem se importavam mais com os filhos.
A cidade ficou oca de alma.
Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza
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