Contos marcianos: La Pulce, de Itamar Pires Ribeiro

02 setembro 2021 às 10h05

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Ser transformado em areia em Marte, grelhado na atmosfera de Vênus ou congelado ao ponto de ruptura das células no oceano de Europa: as 3 saídas dos infernos da Terra
(Com o apoio do escritor e doutor em História Ademir Luiz, o Jornal Opção começa a publicar uma série do que se pode chamar de “contos marcianos” ou de contos galácticos. As viagens espaciais estão, afinal, na ordem do dia.)
La Pulce
Itamar Pires Ribeiro
Enfim entendera a sincronia proposta. “A passagem da pulga”, agora era uma questão também pessoal. Restavam duas horas. Não havia quase nada a fazer. Quase. Poderia gravar mensagens melosas para a Terra, poderia esconder arquivos vitais para o futuro em criptografias impossíveis, carregar as armas e bloquear as portas, mas isso já havia feito, dois dias antes.
Poderia também secar o Porto, Safra 1984, que trouxera para azedar naquele buraco. Providência sábia e urgente. Logo abriu a garrafa, mas o que saiu de dentro era qualquer coisa menos um Porto. Vinagre podre. Se lembrou de ter ouvido uns ruídos estranhos, duas semanas antes, vindos da boca do Olaf Park, mas não prestara a atenção devida. Estava bêbado, o que melhorara seu humor de pedra arenosa, não por muito tempo. Que ideia miserável, assaltar o Porto e substituí-lo por aquela coisa intragável.

Dez minutos haviam se passado. Ainda seria possível terminar de carregar o Marmota e tentar alcançar, antes da noite, a primeira base de Themis, Dice, da qual não tinha notícias há mais de uma semana? O Marmota tinha autonomia suficiente mas Dice foi primeira base escavada em Themis, com mais de duzentos anos de uso, e velhice não era um bom atributo no turbulento Marte. De Dice ele poderia pegar outro Marmota, com capacidade de viagem noturna e correr até Irene, uma base bem mais moderna e que poderia ter resistido às últimas semanas, mas tudo dependeria da sorte em Dice.
Restava uma hora e meia. Bom, poderia tirar uma razoável soneca. O vinagre estragado não ajudaria nisso. A aproximação de Phobos muito menos. A pequena sombra de Phobos, com sua correria diária, o medo dá velocidade? Que anedota ruim.
O tempo escorria, como sempre. Rápido, imperceptível. Mais meia hora se fora. Podia libertar Hermógenes, a tartaruga, de seu cativeiro de proteínas sintéticas. Que ele corresse pelas instalações, que subisse ao altar deixado pelo Park, que atacasse a mordidas o galo de bronze que algum dos construtores do abrigo roubou de uma porta de Paris e incorporou como enfeite na mesa de trabalho. Tanto faz. Uma hora e pouco de prazo. Em breve sua carapaça, seu sistema imune que se adaptara às condições do planeta e transformara as tartarugas em bichos de estimação abundantes, nada disso faria mais diferença.
Criptografou arquivos e os encaminhou à estação retransmissora em Deimos, que boa imagem de abnegação profissional ele não estava deixando! Talvez merecesse uma promoção póstuma. Que honra. Que pena que o Park tenha sumido para Irene há três dias. Não havia como lhe cobrar pelo Porto bebido, nem pelo Marmota roubado, pelos suprimentos surrupiados, pela munição perdida, pela sabotagem nos comunicadores de curta distância. Podia gerar mensagens para a Terra, e daí? Em pouco mais de uma hora e meia a rápida sombra de Phobos passaria frente ao sol, a mensagem levaria meia hora para chegar, quando respondessem, o que teria sobrado? Estática?
Phobos tinha um apelido tolo, dados pelos primeiros expatriados franceses, La Pulce, que terminou incorporado e, às vezes, traduzido para quantas línguas houvesse entre os humanos. La Pulce — uma coisa pequena, insignificante e um tanto cômica. Duas vezes ao dia a pulguinha passava na frente do sol. Com o tempo aquela passagem passou a ter utilidades inesperadas: para os trabalhadores significava uma troca de turno, para os financistas o fim de um ciclo de especulação, para os amantes, a hora de interromper e depois reiniciar os jogos de cama, o acerto dos relógios mais simples usava a passagem da pulga como método de aferição.

Havia algo de cômico na corrida desesperada da pulga, com seus doze segundos cravados para atravessar o sol? Desde a tomada de Phobos ninguém conseguia associar aquela pequena sombra com qualquer coisa engraçada.
Quando a minúscula sombra passava pelo sol num ângulo alto, entre 75 e 125 graus a possibilidade de que algo nos atingisse, vindo diretamente de Phobos, era sempre muito alta para que houvesse qualquer sorriso. O que viesse, se viesse, faria os 6 mil quilômetros que separam Marte de Phobos em pouco mais de dois minutos. Dois minutos, esse era o prazo final.
A faixa equatorial de Marte fora escolhida para abrigar as principais instalações do planeta. O clima um pouco mais ameno significava um gasto de 30% a menos na espessura dos abrigos, uma economia considerável, mas que, por si só, não animaria ninguém. Mas as terras raras e suas imensas jazidas em Themis, isso sim, validavam o empreendimento. A partir delas se produziam as ligas metálicas das velas siderais e o núcleo dos motores de cada espaçonave que cruzava o sistema solar. Até as absurdas e felizmente raras naves-colônia, com seus milhares de criaturas humanas congeladas, que buscavam algum dia alcançar Próxima Centauri B, tinham em seu núcleo de movimento as ligas metálicas de Marte. Até aqueles esquifes.
No equador viviam 90% de todos os extraditados, tanto faz se chegaram por conta e risco, ou se foram exportados da Terra para cumprir sentenças e mesmo os que eram nativos de Marte. A sincronia do equador com a órbita baixa e acessível de Phobos fora outro atrativo econômico. Se Themis tinha jazidas imensas, Phobos era uma jazida flutuantes de terras raras. Três vezes ao dia os enormes paraquedas orbitais eram lançados de Phobos e desciam silenciosamente através da atmosfera rala. Hoje não há mais paraquedas e nem silêncio. O que vem de Phobos desce em velocidade, produzindo, mesmo na atmosfera miserável, uma monótona nota Mi, aguda como um silvo.
Os extraditados que foram jogados para trabalhar próximo aos polos de Marte não tinham que conviver com aquele terror diário, para eles era mais que suficiente a permanente ameaça representada pelos adaptóides, seres microscópicos, pouco mais que vírus, pouco menos que bactérias, que infestavam as águas das calotas polares e que foram os responsáveis por diminuir a população dos polos para umas poucas centenas de miseráveis. A pena no Polo Norte de Marte era considerada como uma das piores punições possíveis. Quando víamos as filmagens sobre o processo de digestão da carne humana pelos adaptóides entendíamos o recado dos juízes.
O derretimento de um terço das calotas polares fora um bom negócio para dois tipos de criaturas. Primeiro para os financistas da Terra: atmosfera densa, habitável, fartura de água, agricultura a céu aberto! Ações disparadas em Xangai, Tóquio, Cairo e Londres. Em segundo lugar para os adaptóides, que puderam infestar milhares de humanos tenros e úmidos. A miserável gravidade marciana dissipou todo vapor dágua na trilha do planeta em torno do sol em apenas cinco giros.
Àquela altura o interesse das companhias de exploração espacial já se voltara para o profundo oceano de Europa de Júpiter, do qual se extraía o riquíssimo licor “guddommelig spiritus”, uma coisa fermentada por milhões de anos na sopa gelatinosa e fosforescente de algumas regiões abissais do oceano de Europa. Uma garrafa daquilo produzia uma tonelada de licor, milhares de alucinações luminosas e nenhum efeito colateral duradouro. O preço de garrafa era igual a duas toneladas de terras raras marcianas. Marte valia pouco, quase nada, bem antes da tomada de Phobos.
Sem as velas siderais, Marte desabaria. Nas forjas de Themis as terras raras eram refundidas e transformadas na matéria prima finíssima e virtualmente indestrutível das velas. Em Themis se concentrava mais da metade da população. Marte tivera, no apogeu da ocupação humana, dois séculos antes, cerca de cinco milhões de humanos, ou quase humanos. Os orgulhosos nativos de Marte, que, por alguma esquisita implicância, preferiam chamá-lo de Mitra, diziam-se Mitradianos e se orgulhavam de seus quase três metros de estatura, do desenvolvimento de seu sistema imunológico para combater os adaptóides e incorporá-los a seu próprio código genético. Esses restariam. Sua fisiologia era imprestável para qualquer outro planeta. Na Terra, em Vênus, teriam um infarto fulminante de seus longos corações. Fora de “Mitra” seus adaptóides jamais seriam admitidos. Estavam confinados. Sabiam disso e extraíam seu curioso senso de humor e orgulho trágico. Olaf Park, um mitradiano imprestável, transmitira uma mensagem a bordo do Marmota. Estava quase alcançando Dice. Mandaria ajuda, toda ajuda que pudesse. Depois deu uma longa gargalhada, como se estivesse engasgado com areia, e desligou. Uma hora. Uma hora até a chegada do que viesse de Phobos.
A Pulga fora a principal fonte de riqueza em Marte, talvez por isso foi tomada. Mas aquele era um raciocínio demasiadamente humano, quem sabe? Assim pensavam os ocupantes de Phobos? Pelos últimos cinco anos toda a faixa equatorial fora metodicamente bombardeada, sempre na passagem alta de Phobos, entre 75 e 125 graus. Primeiro quisemos acreditar que o rompimento de todas as comunicações e o silêncio de Phobos pudessem ser apenas um acidente.
Quando começaram os bombardeios tentamos atribuir-lhes alguma causa natural. Uma rápida análise algorítmica demonstrou regularidades e precisão que seriam incompatíveis com o mero acaso. Nova Mumbai foi riscada do mapa com uma semana de bombardeio preciso: primeiro as comunicações, depois a geração de energia. Os domos de proteção foram mantidos intactos. Era a única indicação de que os ocupantes logo chegariam.
Chegaram.
Não houve sobreviventes.
Nem mesmo os financistas, nem mitradianos. Talvez adaptóides.
“A passagem da pulga” passou a ser uma gíria para a morte certa. Com tudo isso, o fluxo de extraditados terminou aumentando. Havia sempre demanda por novas instalações, manutenção das forjas de Themis, mais velas e motores siderais. Bons lucros. O preço das terras raras justificava qualquer esforço, a necessidade de manter a exploração espacial e armar uma frota para retomar Phobos também eram boas desculpas. Em cinco anos apenas duas naves tentaram pousar no satélite. Sem notícias e nem comentários. A cada semana chegavam novas levas de extraditados, a maioria absoluta não duraria dois meses, sabiam disso. Era o tempo suficiente para pagar as despesas da viagem, saldar as contas na Terra, se livrar de morrer em algum inferno como Guantánamo, Bangu 12 ou o Novo Cepaigo. Tempo suficiente para processar algumas toneladas de fibras para as velas e ser atingido pela passagem da pulga. Ser transformado em areia em Marte, grelhado vivo na atmosfera de Vênus ou congelado ao ponto de ruptura das células no oceano de Europa: eram as três saídas dos infernos da Terra. Quem sobrevivesse estaria livre, e com algum recurso.
Nenhum morador de Marte levava mais a sério a lorota, diariamente repetida pela Terra, de estar armando uma grande frota para retomar Phobos. Nunca chegaria, e pra quê acabar com um negócio lucrativo, se ainda existia muito lucro a ser gerado? Hermógenes que tentasse responder. Ele já atacara, como previsto, a figura do galo de bronze. A dentadas.
Dois minutos. O silvo, em mi, irritante, inquebrável, começara. O que viesse de Phobos chegaria em menos de dois minutos. As armas eram inúteis, eu sabia. O velho traje, ridiculamente amarelo, também. Noventa e um graus de elevação. Um lançamento bem no alvo.
Pouco mais de um minuto.
O silvo se tornando mais agudo.
O que viesse de Phobos logo tomaria aquela estação.
Preparei explosivos. Nem sei se valia a pena usá-los. Por quê não?
Meio minuto. O silvo cessou. Estavam no solo.
Enfim.
Itamar Pires Ribeiro é escritor, crítico literário e jornalista.