Contos marcianos (7): Natimarte, de Edgar Franco-Ciberpajé
26 agosto 2021 às 09h39
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Todos os pesquisadores permanecem por até 60 horas terrestres aqui dentro, o máximo de tempo possível sem ser afetado densamente
(Com o apoio do escritor e doutor em História Ademir Luiz, o Jornal Opção começa a publicar uma série do que se pode chamar de “contos marcianos” ou de contos galácticos. As viagens espaciais estão, afinal, na ordem do dia.)
Natimarte
Edgar Franco-Ciberpajé
Nada faz muito sentido aqui dentro. Mas nada faz sentido em lugar nenhum. Somos nós que damos sentido à existência, agarrando-nos às nossas crenças – subprodutos da imberbe cultura humana – e às nossas parcas e porcas ditas experiências, em existências limitadas que não são nada diante da imensidão das eras cósmicas. O planeta, que por décadas parecia desabitado para nós, guardava um segredo em seu núcleo oco e de temperatura praticamente estável, por volta de 37 graus Celsius.
Foi nomeado pelos gregos de Ares, o deus da guerra, e renomeado como Marte pelos Romanos. Talvez o sentido que eu esteja dando ao que estou experienciando agora seja o mais distante possível da concepção de guerra. Ou seria esta a semente astral de uma guerra diferenciada?
Eu vim com a décima primeira missão de exobiólogos que estudam o núcleo de Marte. Sou especializado em psicologia transhumana, humana, animal e vegetal. Estudei e analisei todos os relatórios das missões anteriores, mas nada se compara a estar aqui agora, conferindo com meus próprios olhos e demais sentidos este fenômeno completamente inusitado, sem precedentes, sem explicações lógicas, sem nenhum sentido a partir de todos os paradigmas que balizam a ciência humana. Entretanto, a estrutura básica do fenômeno retoma metaforicamente algo que é muito natural no contexto da biosfera Terrestre, produzindo um estranho paradoxo entre sua forma compreensível e seu modus operandi incognoscível.
Estou há 63 horas aqui, e vivencio a estranha sensação que acaba dominando a nossa psique após algum tempo experienciando o fenômeno. Sensação que leva-nos a uma condição psicológica que rememora estados não ordinários de consciência causados pela ingestão de altas doses de enteógenos como a ayahuasca, o Psilocybe cubensis, ou o peiote. Estados que podem durar por até sete dias após a saída do local, e fizeram inúmeros cosmonautas desistirem de suas missões, retornarem à Terra e mudarem completamente suas vidas e valores existenciais. Por isso todos os pesquisadores permanecem por até 60 horas terrestres aqui dentro, o máximo de tempo possível sem ser afetado densamente pela sensação. Mas eu estou aqui para experienciar profundamente o estado de consciência induzido pelo contato com o sistema, para tentar compreender seus efeitos na psique humana.
Confesso que escrevo este diário tentando manter a coerência e a racionalidade enquanto experiencio a sensação mais extasiante que já experimentei em meus 49 anos de vida. Algo que transcende a ideia de sublime, e mesmo diante das encruzilhadas lógicas que me impedem de ver qualquer racionalidade neste fenômeno, estou em um estado sereno, mas de completa e total percepção e atenção a todos os detalhes inacreditáveis desta experiência transatávica e magnífica.
Agora sinto meu coração batendo exatamente no compasso do dele!
Do ciclópico feto da criatura de milhares de quilômetros de tamanho que é gestada no útero núcleo de Marte.
Edgar Franco-Ciberpajé é professor da Universidade Federal de Goiás, arquiteto e artista.