Contos da pandemia (28): De volta para casa, de Placidina Lemes Siqueira
30 julho 2021 às 09h31
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O inimigo invisível matou meu amigo, que não teve nem velório. Despediu-se sem nossa presença e partiu para a eternidade. Não vi seu corpo tombado . Mas tombou
(Com o apoio do escritor e doutor em História Ademir Luiz, o Jornal Opção organizou uma seleção de contos escritos por autores goianos explorando o tema da pandemia da Covid-19 — que já vitimou mais de 554 mil brasileiros. A prosa curta mostrou-se não apenas possível, mas necessária, durante a pandemia. O jornal vai publicar um conto por dia e espera que, em seguida, alguma editora publique um livro.)
De volta para casa
Placidina Lemes Siqueira
Evolução pós-revolução. Apesar das perdas, dor, sofrimento e em reclusão, espaço de interiorização, solidariedade, união: despertar face à alienação aos fundamentos de atritos políticos, fruto da ganância e ambição egoísta.
Já vi filmes com cenas horripilantes de batalhas: lutas sangrentas na era a. C, batalhas navais entre povos antigos; brigas mortais na Idade Média e mesmo na vida moderna; relatos horríveis da Primeira Grande Guerra Mundial ouvi de uma senhora que em 1918, no colégio, tricotava meias, capuzes, luvas e cachecóis para enviar aos campos de batalha no velho mundo. O mesmo se fez na Segunda Grande Guerra mas que se destinaram aos “pracinhas” do Brasil na Itália.
Jamais imaginei-me nessa situação, até a catástrofe do Césio-137, maior acidente radiológico do mundo que, em 1987, colocou “de joelhos” a alma goiana.
Ouvi, aterrorizada, o meu amigo e vizinho em Paraúna/GO Senhor Clarismundo Moreira, expedicionário da Segunda Guerra, falar de suas experiências na “Tomada de Monte Castelo”. Vi-no também “calar” a dor a qual, num determinado dia, foi capaz de contar:
— “Presenciei”, disse-me, “um soldado companheiro, amigo, contar alegre um sonho que teve durante a noite anterior: — ‘Clarismundo’, me balbuciou, com os olhos ainda mais azuis de fé: ‘ — … estamos quase de volta pra casa…’ — frase do coração de todo soldado… Mal terminou a fala, recebemos uma ‘granada’… Ele tombou. Na minha despedida de volta ao Brasil, encontrei sua namorada junto com a minha; trazia nos braços um bebê de olhos azuis…”.
Nasci em 1944 para findar com a Segunda Guerra, diziam minha mãe e vozinha.
Entretanto, padeço estas ameaças silenciosas deste vírus, Corona-19. Pandemias, sei que houve várias e ensinaram a mesma higienização: uso abundante de água e sabão e proteção à respiração: Gripe, Cólera, Varíola, peste Bubônica, Aids, bem depois da Peste de Justiniano e da gripe Russa.
Sem falar em outras catástrofes, como o Vesúvio em Pompéia, o Tissurami na Nova Sião; e o Dilúvio com Noé; e as pragas causadoras de fome e morte no A.T. Bíblico? E os naufrágios, consequência da compulsão à fortuna e a riquezas nascidas do orgulho a exemplo no filme “Titanic”? E as erosões e os desmoronamentos? E o aquecimento global? (Pressa nossa de cada dia…)
Padeço a Terceira Grande Guerra. Feita de ameaças insinuantes nesta tríplica condição: viúva, funcionária pública e idosa. Dentro de casa. No aconchego do lar deixado por meu marido; quanta falta ele me faz… tenho filhos, bons filhos, mas impedida de encontrá-los, abraçá-los.
A coisa mais preciosa que Deus me deu, no momento, chama-se netos: Vítor Rezende de Siqueira, Letícia Rezende de Siqueira e Natália Siqueira Martins. Pô-los no colo, seria reviver o paraíso; ah, meu Deus, quanta saudade!
Não uso capacete igual o Senhor Clarismundo, uso máscara; não uso coturno, uso uma sapatilha fácil de pôr e tirar e desinfetar, um lenço na cabeça, deixando o cabelo livre do vírus, “Bicho de Sete Cabeças”…
— “Vovó, pega seu carro e vem para Paraúna!…” É minha neta Natália cortando meu coração de 76 anos.
Não sonho o mesmo sonho do jovem combatente Clarismundo: “Voltar Para Casa”; sonho um sonho confuso, querendo voltar para (um futuro onde já fui, ou um passado carregado de luminoso presente?) um presente de iluminúrias, um Brasil inserido no planeta sem pesadelos, para meus netos, Brasil de terra rica e bonita, cobiçada, sem o exterminador chinês esperto e sorrateiro…
Deito e descanso do serviço doméstico e das notícias contraditórias, estatísticas mentirosas, falácias repetidas e amedrontadoras saídas da lambança da mídia, de “whatsapps” desacreditados com desrespeitosos “fake news”… Pasmam-nos diante do inimigo invisível que afinal matou meu amigo de igreja que sequer teve velório, mas foi enterrado; despediu-se sem nossa costumeira presença e partiu para a eternidade. Não vi seu corpo “tombado”. Mas tombou.
Só ligo televisão na “Rede Vida”: os mesmos padres, os mesmos cantores, mas com os sermões que se renovam, dando um tom dinâmico original e o que é melhor: sempre com a mesma essência de Fé, Esperança e Amor com entrelinhas de desapego para maior leveza do Espírito, adequando-se a uma idosa em isolamento, pronta para Voltar Para Casa; não a volta de Clarismundo à família, mas a volta do soldado, seu companheiro de olhos azuis, pois neste clausuro me perpetuo em trilheiros de tempo eterno, espaço infinito: De Volta Para a Casa do Pai.
Placidina Lemes Siqueira, escritora e professora, é integrante da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás (Aflag).