Contos da pandemia (25): Exilado, de Anderson Alcântara
27 julho 2021 às 11h06
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“Não há nenhuma voz interior a me a cochichar qualquer som. Sou uma embalagem somente oca, sem nenhum outro adjetivo”
(Com o apoio do escritor e doutor em História Ademir Luiz, o Jornal Opção organizou uma seleção de contos escritos por autores goianos explorando o tema da pandemia da Covid-19 — que já vitimou mais de 551 mil brasileiros. A prosa curta mostrou-se não apenas possível, mas necessária, durante a pandemia. O jornal vai publicar um conto por dia e espera que, em seguida, alguma editora publique um livro.)
Exilado
Anderson Alcântara
Olho pela janela do apartamento e a paisagem parece a de sempre. Outros prédios no mesmo lugar, o céu com nuvens rarefeitas e o ar carregado com algum mofo. A parte do mofo talvez seja um privilégio dedicado a mim somente. É a terceira vez no dia que cumpro esse ritual tedioso. É uma forma de gastar o tempo, que parece demorar demais em algumas partes do dia.
— Benatti, por que você não tenta fazer um pouco de música?
É a voz da minha mulher. Entendo como uma sugestão carinhosa de alguém que entende as minhas necessidades. É claro que essa conclusão só é possível usando algumas das ferramentas que diversas sessões de terapia me concederam. Sem interpretação, sem edição poética ou exercício de imaginação, a sua frase é exatamente um pedido de socorro.
— Benatti, dê-me um pouco de paz! Por favor, por amor de qualquer coisa, tranque-se no quarto e vai compor a sua maldita música! Ou vá procurar um trabalho de guarda, de serralheiro! Ou simplesmente se jogue da sacada!
Essa talvez seja a voz verdadeira da minha mulher, caso eu pudesse ouvir seus pensamentos. Não a culpo. Eu deveria estar sendo um homem produtivo, alguém que muda a vida das pessoas e ganha um bom dinheiro para isso. Não sou esse tipo de homem e, mais do que a minha mulher imagina, lamento por esse fracasso.
O início da pandemia não trouxe apenas medo para mim. Vi como uma oportunidade de, com mais tempo e recolhimento, compor uma grande música. Teria os elementos dramáticos necessários, teria toda a dor do mundo a me servir de inspiração. Em um ano, o mundo voltaria a abrir suas cortinas e quando isso acontecesse lá estaria eu, no centro do palco, sendo aplaudido e devorado pelos fãs. Seria a voz limpa, o som que ecoaria pelo novo mundo, purificado da peste.
Como todos sabem, isso não aconteceu e não vejo chão fértil para que vigore. Não consegui compor nenhuma letra, nenhum acorde. Quando sento com o violão e o bloco de notas, é como se eu estivesse diante de uma plateia estrangeira com a obrigação de fazer um longo discurso, sem ter qualquer conhecimento da língua. Não há nenhuma voz interior a me a cochichar qualquer som. Sou uma embalagem somente oca, sem nenhum outro adjetivo.
Volto ao quarto, que durante o dia é transformado em estúdio. Um estúdio que ainda não cumpriu sua função. Um estúdio que tem servido mais de refúgio, de templo do ócio. As paredes não são testemunhas de som algum.
Enquanto o santo da inspiração não faz de mim o seu cavalo, navego na internet e consumo notícias da tragédia. O celular me avisa que um amigo muito querido está intubado, perdendo a luta pela vida. Não é conhecido a ponto de ser notícia de jornal. Crescemos juntos e fomos melhores amigos durante a adolescência. Ganhamos barriga, filhos e rugas. E creio que perdemos o entusiasmo de conquistar o mundo com nossa música. Um dia ele olhou nos meus olhos e disse com sentida sinceridade:
— Benatti, a nossa música não é boa o suficiente para nos fazer ricos e famosos. Não é boa o suficiente nem para nos oferecer a condição de colocar comida em casa. Essa é a verdade, italiano!
Tivemos um sério debate que terminou com mágoas e cada um seguindo o seu rumo. Ele seguiu o rumo da faculdade de engenharia. Eu não tinha muito rumo a seguir. Entendia que ele era um vendido e que eu, sozinho, iria correr atrás dos meus sonhos. Seria o novo astro da música no Brasil e aquele entrevero seria parte do folclore do meu sucesso. Seria uma anedota que divertiria plateias ao redor do mundo.
Não conquistei o mundo. Ele também não. Teve boa vida, com mulher e dois filhos, morando em casa de dois pisos em condomínio. Não era rico, mas tinha o suficiente para ser aceito em clubes sociais da cidade. Não parecia desejar mais do que isso. Eu continuei sendo o rebelde, o que insistia em não virar adulto. Aos olhos dos meus amigos eu era uma caricatura. O artista fracassado, que vivia em apuros.
Por muitos anos não me via assim. Eu era o artista à frente de seu tempo. Entendia que o mundo ainda não estava preparado para me reverenciar. Mas que essa era uma deficiência do mundo e não minha. Aos poucos, a realidade foi se revelando para mim, sem mistérios. E isso era apavorante. Comecei a me sentir o ator que ensaia durante meses e descobre que a peça será cancelada antes da estreia.
Sem essa ilusão quase juvenil, o que sobrou foi um chão seco, sem água a jorrar, sem bafo de vento, terra de povoação nenhuma de vida. O que sobrou é apenas o corpo, ainda vivo, de um homem que olha pela janela do seu apartamento popular. Um homem que sonhou olhar por outras janelas.
Resolvo sair um pouco com o cão. É preciso arejar os pensamentos. O cão precisa cumprir seu ritual. Enquanto seguro aquela vida inocente pela guia, percebo que ele está feliz e que se sente seguro comigo. Quase sorrio com essa constatação. Enquanto caminhamos pelas ruas do bairro, ressoa em mim, do nada, uma fala da minha mulher dias atrás.
— Benatti, por que você não faz igual todo mundo e tenta uma vida normal?
Não consigo lembrar qual evento exatamente motivou tal sentença. Possivelmente na hora eu tenha ficado algo entre furioso e humilhado. Talvez agora, de máscara no rosto, com o cão alegre na guia, caminhando para arejar os pensamentos, eu tenha considerado a fala dela como uma utopia a perseguir.
Anderson Alcântara é jornalista e escritor.