Contos da Pandemia (20): Adversidades domadas, de Luciano Alberto de Castro
22 julho 2021 às 08h47
COMPARTILHAR
O desafio era viver sem a Cecília. Ela era seu amparo, sua alegria emprestada. Como não sabia sorrir, ele sorria pelos lábios dela. Isso ele perdera pra sempre
(Com o apoio do escritor e doutor em História Ademir Luiz, o Jornal Opção organizou uma seleção de contos escritos por autores goianos explorando o tema da pandemia da Covid-19 — que já vitimou mais de 544 mil brasileiros. A prosa curta mostrou-se não apenas possível, mas necessária, durante a pandemia. O jornal vai publicar um conto por dia e espera que, em seguida, alguma editora publique um livro.)
Adversidades domadas
Luciano Alberto de Castro
— Tudo bem, seu Vicente? O senhor consegue me ouvir?
— Sim, estou te ouvindo bem. Que lugar é este?
— O senhor está numa UTI. Eu sou a enfermeira Raquel. O senhor sofreu um acidente de carro e está internado aqui há mais de um ano. Hoje é dia de glória, seu Vicente. O senhor vai voltar pra casa. Que bênção, hein? Deus é maravilhoso.
— Minha mulher está aí?
— A sua filha está aguardando o senhor lá fora. Ela vai te explicar tudo direitinho. Sobre o acidente, sobre a sua internação e outras coisas. Seu estado esteve bem grave. Bem-vindo à vida, seu Vicente. Daqui a pouco, o Dr. Fernando vai vir dar alta pro senhor.
Vicente Vega é paulistano, filho de um espanhol andaluz. Na década de 70, Manolo Vega resolveu mudar-se de São Paulo pra Goiânia com a mulher e o pequeno Vicente, filho único e com 12 anos de idade. Montaram uma pequena metalúrgica no Capuava. O negócio prosperou, mas os pais nunca quiseram que o filho trabalhasse na fábrica. Vicente estudara nos melhores colégios. Os professores se admiravam com a afinidade e talento do menino para matemática e cálculo. Era um geniozinho tímido. Aos 17 anos, passara no vestibular para Economia. Após a graduação, emendara o mestrado com o doutorado em São Paulo. De volta a Goiânia, ingressara na Universidade Federal como docente.
— A perda da mamãe foi muito sofrida pra nós. Até hoje é. Foi um problema atrás do outro. Quando o senhor sofreu o acidente, ela quase enlouqueceu. Vinha à UTI todos os dias. Depois veio a pandemia. Ficamos aterrorizados, presos dentro de casa, e eu não permiti que ela viesse mais ao hospital. Coitadinha. Não comia direito, dormia mal. Passava o dia suspirando e choramingando pelos cantos.
Vicente escutava calado o relato de Maribel. Não conseguia expressar emoção. Sozinho no banco de trás, era um homem magro, quase esquelético, a cara chupada, as mãos enormes, ossudas e manchadas de hematomas. A máscara N95 o atrapalhava a respirar. Resignava-se. Descobriu que havia passado mais de um ano na UTI entre a vida e a morte. Imagens do acidente lhe chegavam e fugiam como flashes de máquina fotográfica. Mais de um ano numa UTI. Que loucura! O mundo aqui fora estava muito diferente. Uma pandemia de Covid que matava gente igual à gripe espanhola. Lembrou-se dos casos que o velho Manolo lhe contava. A esposa havia morrido. Que tristeza! Será que não seria melhor ter morrido também?
— Quando foi que a Cecília faleceu?
— Semana passada fez sete meses. A mamãe pegou a Covid em casa. Os meninos do Rodrigo foram visitá-la e passaram a doença pra ela. Eu falei pra ninguém ir lá em casa, exatamente por causa dela. Ninguém me escuta. Deu nisso. Na casa do Rodrigo, todo mundo pegou: ele, a mulher e os dois filhos. Ninguém ficou ruim. Só a mamãe, coitada. Com uma semana, foi piorando, piorando, sentindo falta de ar. Trouxe pro hospital. Internou, foi pra UTI, intubou e, com 20 dias, veio a notícia. Muito triste.
— Sua mãe ficou nessa mesma UTI onde eu estava?
— Foi. Nessa mesma. Por sorte, conseguimos uma vaga. Na época que ela adoeceu, todas as vagas de UTI em Goiânia estavam ocupadas.
— Sorte?
— Assim, pai: é maneira de falar. Ela não resistiu, mas, pelo menos, conseguimos dar toda assistência pra ela. Foi um alento. Engraçado é que vocês dois estavam na mesma UTI e nenhum sabia do outro. Ô judiação, meu Deus!
— O Rodrigo está bem? Por que não veio com você?
— Tá bem, sim. Ele até queria vir mesmo. Eu é que não deixei. Aquele lá não anda sem a mulher. Iria encher o carro e não está podendo aglomerar. Já são mais de 500 mil mortos no Brasil. Aqui em Goiânia morre gente todo dia. Sabe a Rosane, filha do professor Bechara, seu colega da Universidade? Morreu semana passada, 35 anos. Ainda está muito perigoso. Principalmente pro senhor, que não tomou vacina e ainda está muito debilitado.
— E tem vacina pra essa doença?
— Tem. Eu já tomei a primeira dose. Trabalhadores da saúde têm prioridade.
— Funciona?
— Vacina funciona, sim. Tem de vários tipos. A ciência trabalhou muito rápido, pai. Pro senhor ter uma ideia, a pandemia começou na China, em dezembro de 2019. Um ano depois, a Inglaterra já estava vacinando.
— E esse tanto de gente morrendo no Brasil. Não tomaram vacina?
— O senhor esqueceu que temos uma besta na Presidência? Aquele energúmeno não comprou as vacinas a tempo. A Pfizer ofereceu as vacinas pra nós e ele não quis, o senhor acredita? Ficava fazendo aquelas lives idiotas, mandando o povo tomar cloroquina e remédio de piolho. Por isso morreu esse tanto de gente. A mamãe mesmo poderia ter sido vacinada. Hoje estaria viva. Ai, que ódio daquele homem! — Calma, Maribel! Respira, olha a pressão!
— Eu sabia que esse governo não ia ser bom pro Brasil. O problema foi que a maioria do povo queria ele de qualquer jeito. Fiquei impressionado que até alguns colegas da Universidade votaram nele. As pessoas pareciam cegas.
— Um absurdo o povo eleger um sujeito desse nível. Político da pior espécie. Nunca fez nada pelo Brasil enquanto era deputado e depois vem pagar de político honesto, falar de nova política, de anticorrupção. Nojento! Mais nojento ainda é o povo que votou nele. O Rodrigo até hoje defende esse homem. Que decepção com o meu irmão. Ele e a mulher, e até os meninos. Não sei o que têm na cabeça. O cara viu o que aconteceu com a mamãe, ele mesmo perdeu colegas de trabalho e ainda acha que a culpa não é do presidente. Isso é uma doença.
— É, minha filha. Pelo que vejo, o Brasil tem duas doenças graves: a Covid e o presidente.
— Isso mesmo, pai. Pelo jeito, o senhor não perdeu a sua espirituosidade. Que bom! A máscara tá incomodando o senhor?
— Um pouco.
— Logo, logo, a gente se acostuma. Ainda mais essa que eu trouxe pro senhor, N95 profissional. Ela é boa porque não aperta a orelha. Trouxe muitas lá da clínica.
— Eu tô gostando de usar a máscara. O que é isso que você tá passando nas mãos? É hidratante?
— Isso é álcool gel, pai. Tem que usar direto. Dá a mão aqui. Põe o gel na palma da mão e esfrega bem. Precisa friccionar por uns 20 segundos.
— Gostei disso também.
— Chegamos, pai. Imagino como o senhor deve estar com saudade da sua casa, hein? Olha só quem veio te receber na porta!
— A Neide. Está até mais gordinha. Ela não pegou Covid?
— Pegou não. Ela também conseguiu se vacinar. Depois que a mamãe faleceu, eu fiquei sozinha e fiz o acerto dela. Tudo dentro da lei. Paguei uma nota. Mas foi bom pra ela. Até comprou uma chacrinha. Agora ela trabalha pra nós como diarista, duas vezes por semana.
— O Rodrigo não veio me esperar?
— Não. Ele tá trabalhando agora. Vai vir hoje à noite. Eu tive que ser chata mais uma vez e exigi que ele viesse sozinho e de máscara, porque o bonitão, igual ao ídolo dele, não gosta de usar.
Vicente saiu do carro com dificuldade. Sentia-se fraco e confuso. Parou por alguns instantes. Olhou em volta. O sobrado estava feio, malcuidado. Uma enorme mancha de infiltração na parede do seu banheiro. A pintura soltando grandes cascas marrons. A floreira seca. Mato nos canteiros. A gardênia com flores amareladas. Vicente deu uns passos indecisos em direção à porta da frente, onde Neide o esperava com o sorriso largo, de dentes muito brancos. Estendeu-lhe a mão trêmula. Ela respondeu tocando-lhe a ponta dos dedos com um soquinho leve.
— Agora é assim, seu Vicente. Ninguém usa mais essa moda de apertar a mão dos outros. Isso é coisa do passado. O senhor tá com uma cara até boazinha. Tá é muito magro. Mas recupera logo. Se a Maribel quiser, eu venho cozinhar pro senhor todo dia. Fazer aquela paella que o senhor gosta, hein, seu Vicente?
— Neide, eu vou subir com meu pai pro quarto dele. Você já arrumou lá?
— Sim. Tá tudo limpinho. Troquei os lençóis, as fronhas. Lavei o banheiro.
— Ótimo. Eu vou subir com ele agora. Outra coisa: quando o almoço estiver pronto, coloca a comida dele separada, tá? Prepara aquela mesinha lá do fundo. Vai ficar exclusiva pra ele.
Quando Maribel saiu, Vicente sentiu-se profundamente só. Continuava fraco e confuso. Trancou a porta. Ficou parado mirando os objetos no quarto: a cama arrumada, o lençol branco bem esticado. Apenas um travesseiro. O quadro na parede: ele e Cecília em Madri. Que sorriso lindo tinha Cecília. Era um riso franco, sincero, gratuito. Ele não sabia sorrir. Era um ogro carrancudo. Escutou as pancadas nas folhas de flandres: pá, pá, pá. Ele tentando se concentrar na tarefa de trigonometria e as pancadas secas: pá, pá, pá. “Hay que estudiar para no ser un bruto como yo”, dizia-lhe o velho Manolo. De que adiantou estudar? Sou estudado, bruto e infeliz.
Abriu o guarda-roupas. Os vestidos de Cecília nos cabides, passados, alinhados, como se ela ainda os fosse vestir. Como se estivessem prontos para uma festa. Abriu uma gaveta e viu as peças íntimas da mulher. Em outra gaveta, as camisolas, pijamas, as roupas que ela usava dentro de casa. Pegou o robe cor-de-rosa, aquele de que ela mais gostava, o peignoir, como ela o chamava. Cheirou e beijou sofregamente o peignoir rosa. Depois, acariciou o rosto magro com o tecido. “Onde está você, meu amor?” “Por que me deixou aqui sozinho?” Chorou. As pancadas nas folhas de flandres: pá, pá, pá. A tarefa de trigonometria e as pancadas secas: pá, pá, pá. Deitou-se na cama e chorou.
Como um instinto de sobrevivência, e de forma rápida, Vicente Vega foi se apropriando daquele novo mundo. Ele seria sempre aquele sujeito esquisito e ranzinza. Isso não mudaria. O desafio era viver sem a Cecília. Teria que se acostumar. Ela era seu amparo, sua alegria emprestada. Como não sabia sorrir, ele sorria pelos lábios dela. Isso ele perdera pra sempre. Qual o problema? Seria eternamente triste. Só que, agora, ele teria uma tristeza legítima, reconhecida pela sociedade. “Sou viúvo, minha mulher morreu de Covid” seria a sua senha.
De uma coisa estava gostando: os novos hábitos, o mundo desconexo, desconjuntado. Isso era bom demais. Já se acostumara com a máscara. Na Universidade, trabalharia sempre mascarado, não precisaria mostrar os dentes pra ninguém. “O professor Vicente é muito sério, nunca sorri.” Nunca mais ouviria esse tipo de comentário. Outra coisa espetacular: abolir o aperto de mão. Sempre achara o gesto antiquado, além de anti-higiênico. “O sujeito acaba de coçar o saco e vem pegar na mão da gente.” Era um absurdo! O soquinho que aprendera com a Neide era perfeito. E o isolamento social, então? Que maravilha! Agora poderia praticar legalmente a sua misantropia. “Fora a perda da Cecília, essa pandemia me trouxe alguns benefícios.”
— Seu Vicente! Seu almoço tá na mesa. Era a Neide gritando lá de baixo.
Enquanto descia vagarosamente as escadas, Vicente ia pensando na nova vida que teria pela frente. De novo, vieram-lhe as palavras do velho Manolo: “Hijo mío, en la vida las adversidades siempre pasan. Hay que vencerlas.” Vicente Vega estava domando as suas.
Luciano Alberto de Castro é escritor.