Um mistério: um cabo aposentado da Polícia Militar morreu dormindo. Um amigo foi ao velório e, depois, foi ao cartório. Lá viu o morto, ou seria o vivo?

(Com o apoio do escritor e doutor em História Ademir Luiz, o Jornal Opção organizou uma seleção de contos escritos por autores goianos explorando o tema da pandemia da Covid-19 — que já vitimou mais de 544 mil brasileiros. A prosa curta mostrou-se não apenas possível, mas necessária, durante a pandemia. O jornal vai publicar um conto por dia e espera que, em seguida, alguma editora publique um livro.)

Arte de Igor Morski
Obscuras impressões

C. J. Oliveira

Um amigo nosso, depois de muito sofrer pela perda da mulher, bateu com as botas, finou-se. Fiquei sabendo pela filha, que me passou uma mensagem no celular, desesperada.

Obscuras impressões, mais tarde, me trouxeram uma tremenda insônia, a noite longa e impiedosa parecia não terminar.

Na véspera, falei com minha irmã sobre o assunto pelo Whattsapp.

— Você vai amanhã ver o corpo? — Indagou ela.

— Não, acho que não — respondi eu.

— E posso saber por quê?

— Por causa da Covid-19.

— Mas ele não morreu de Covid.

— Eu sei. Mesmo assim acho que não vou. Nem você deveria ir.

— Mas onde fica nossa consideração para com ele?

— Consideração e pandemia são duas coisas incompatíveis.

Ela continuou contestando:

— Se fosse o contrário, se fosse alguém da nossa família tenho certeza de que ele iria. Ele sempre foi muito presente.

— É verdade. Nisto eu tenho que concordar com você.

— Então, a família vai reparar. Afinal de contas fomos criados juntos. Éramos quase irmãos.

— Mas não vou — cortei-a pelo caminho.

— Daí, ninguém vai? Nem a mãe nem o pai? Nem um de nós?…

— Não. Esqueceu que nossos pais são velhos. Eles não devem ir a velório. São as recomendações das entidades de saúde.

— Mas eu vou. — Ótimo — disse eu: — Faça as honras da família.

— Mas você deveria ir também. Ele gostava tanto de você…

— Já disse que não, e ponto final! Não insista! — Despedi dela e saí do aplicativo. Fui fazer outra coisa.

Pintura de Igor Morski

Eram quase meia-noite quando deixei o celular para tentar dormir o resto da madrugada. Com a falta de sono atropelando o meu repouso, me fazendo rolar na cama como um verdadeiro noctâmbulo, fiquei pensando no pesar da família, nas inconstâncias da vida, nos dissabores da morte.

No dia seguinte, eu tinha um serviço a fazer bem cedo lá pro lado do cemitério, onde segundo indicações o corpo seria velado. Eram seis horas da manhã quando saí de casa para trabalhar.

No caminho fui pensando no nosso amigo, um cabo aposentado da Polícia Militar, e que amanheceu morto na cama, conforme relatos. Sofria do coração e nos últimos dias não andava nada bem. Não houvera tempo para despedidas nem lamentações. O óbito o pegara de surpresa. Simplesmente deitou para dormir e não acordou mais. Dormiu pra sempre. Sono eterno. Sono dos justos. Tudo isso fui pensando pelo caminho, ou seja, na morte dele e na morte em si — terrível susto —, que vem como o ladrão noturno.

Ao passar em frente ao jardim dos mortos, repleto de coroas desfalecidas de outros sepultamentos, senti um aperto por dentro, como se as falas de minha irmã ao telefone na noite anterior me atormentassem o espírito. Perdi o controle, completamente. Angustiado, sentia uma voz falando em mim: eu deveria vê-lo, nem que fosse por um minuto, e não deveria jamais perder a ocasião. Afinal, realmente, ele era grande amigo da família. Quase um irmão! Porca miséria! — Fui assaltado, assim, por uma espécie de remorso antecipado (caso não comparecesse), e, quando dei por mim, o carro já me guiava ao portão de entrada, como se soubesse sozinho o rumo do campo-santo.

Ao chegar, fui arrastado ao salão principal.

Eu sabia das seis salas de velório, intercaladas por paredes duplas. Sabia-as de cor de outros funerais. Uma a uma, as revirava na mente.

Logo que cheguei, pude perceber que as do fundo estavam trancadas. Nas duas da frente alguma coisa havia. Na primeira, duas pessoas interceptavam a entrada como se já estivessem lá há um certo tempo. Eu não conhecia essa gente. Então, me precipitei para a segunda, que era bem defronte: a lâmpada acesa. Um vidro transparente vedava a passagem, ao lado de dois enormes vasos de flores pintados de preto. Lá dentro, só o caixão fechado jazia com um chapéu da Polícia Militar em cima da tampa. Olhei aquela estampa fúnebre, penalizado. Reconheci o corpo como se o estivesse vendo. Só poderia ser ele.

Eram quase sete horas, o dia acabava de clarear, mas não havia ninguém. Um finalzinho de sereno ainda caía da pesada noite fria, mas ninguém havia chegado. A gélida manhã me derreteu os ânimos. Um súbito tremor me atravessou a alma. Éramos, naquele momento, só eu e a urna ali lacrada, à espera de que alguém a abrisse, o chapéu em cima representando o defunto, jogando terra no meu impressionismo.

E agora, o que eu faria ali parado, com as mãos metidas no blusão?

Ao longe, lá fora, no campo verde, percebi um novo féretro chegando na isolada capela — sinistra visão ampliada pelos túmulos em flores a sumir de vista.

Nem cinco minutos se passaram, gente conhecida começou a chegar. Uma delas, provavelmente a filha, desabou no chão iniciando um escândalo. O funesto evento a deixara em desespero. Foi amparada por alguém que a acompanhava. Um cenário triste, típico dos velórios repentinos principiara devagar. Percebi que o clima ia ser tenso. Mal cheguei, a angústia me assaltou, e já queria sair dali, de preferência despercebido. Se pudesse, sairia correndo, talvez evaporasse, sem que ninguém me visse, nem o porteiro que quando cheguei me interpelou. Eu conhecia a todos, mas só abordei o irmão da vítima, que me cumprimentou, solenemente, abriu a sala e a tampa do caixão, descobrindo o defunto, e deu início à cerimônia. Saímos os dois um momento, pela porta envernizada de lado que também foi aberta, e ali conversamos sobre o acontecido, a surpresa da família ao encontrá-lo morto de manhã e a inútil tentativa de buscar as explicações que não havia. A vida, às vezes é cruel e não escolhe os indivíduos. Completando o desespero de todos, ao fundo, um choro miúdo se ouvia da moça que caíra no chão, um choro surdo e penetrante pelas coisas que não voltam mais.

Eu não tinha muito tempo para permanecer ali, pois o dever cotidiano me chamava. Fiquei mais cinco minutos conversando com meu amigo e seu filho adolescente, que não saía de perto de nós nem um instante, saracoteando em volta como um menino. Ele ficou surpreso em me ver e agradeceu pela consideração de velhos conhecidos. E só depois fiquei sabendo, que minha irmã, após forçar a barra comigo ao telefone para que eu estivesse ali a todo custo, não compareceu, falhando ao velório — ela ia me pagar! Acabei fazendo eu, sem querer, as honras da família.

Eu procurava abreviar aquele encontro, ao máximo; não me continha mais de impaciência, e depois de mais alguns minutos contemplando a urna aberta, saí esbaforido.

Pintura de Picasso

Mais tarde, num cartório no centro da cidade, estou na fila para reconhecer firma num documento, quando vejo a dois metros de mim um homem meio de costas, pelos flancos, cabelo castanho aparado, média altura de corpo, com as características do meu amigo falecido, inclusive os gestos. Tomei um susto — estaria eu vendo coisas? O que o morto fazia naquele cartório se o tinha visto há pouco estendido num caixão de madeira? Seria ele mesmo ou uma mera aparição do outro mundo?

À socapa, percebi um sorriso estranho no rosto pálido quando este se virou para mim, e o brilho no brasão do chapéu da Polícia Militar que o homem usava. O mesmo que eu vi, algumas horas antes, sobre a tampa escura do caixão lacrado.

C. J. Oliveira é escritor.