A corrosiva e inacabável paúra entrava por todos os lados, até mesmo nos sonhos mal sonhados daqueles moradores que agora viviam desolados

(Com o apoio do escritor e doutor em História Ademir Luiz, o Jornal Opção organizou uma seleção de contos escritos por autores goianos explorando o tema da pandemia da Covid-19 — que já vitimou mais de 540 mil brasileiros. A prosa curta mostrou-se não apenas possível, mas necessária, durante a pandemia. O jornal vai publicar um conto por dia e espera que, em seguida, alguma editora publique um livro.)

Santo Antão do Livramento, valei-nos!

Josiane Adorno

Na cidade de Santo Antão do Livramento as pessoas andavam cabisbaixas, passavam por um período complicado, a tristeza e o medo tomavam conta do ar que respiravam, das camas que dormiam, das igrejas que se ajoelhavam, das fábricas que labutavam… A corrosiva e inacabável paúra entrava por todos os lados, até mesmo nos sonhos mal sonhados daqueles moradores que agora viviam desolados. As autoridades gritavam que havia um vírus coroado no ar, a coroa não era de um rei, mas de um demônio que se tornou onipotente, onipresente! Por todos os cantos só se falava e só se pensava no coroado, assim sua onipresença se fazia sempre presente pelas cidades, pelos rincões, em qualquer lugar sem fim desse mundo desamparado. No início as autoridades anunciaram que esse coroado vinha de terras distantes, tão distantes que era difícil de calcular o seu paradeiro; só se sabia que o povo era amarelo, não tinham lá todas as cores que cá tínhamos quando nascíamos. Pelo jeito o coroado quis ultrapassar as fronteiras e se misturar com todo o mundo. Alguns moradores de Santo Antão cismavam e diziam: quá, esse trem não vai chegar aqui tão cedo, não carece de tanto desassossego… Mas, qual o quê, não demorou muito e o primeiro a sucumbir foi o compadre José Minervino; o homem morreu em questão de uma semana. O povo todo ficou alarmado. Enfiaram panos na cara e em nada tocavam sem botar sentido. Um pandemônio danado de alvoroçado. O tempo começou a correr diferente e as pessoas, empauradas até os ossos, não mais se abraçavam, sequer se cumprimentavam selando as mãos, era só um gesto ligeiro, sem graça, sem calor e sem tempero. O povo mal se olhava e se porventura alguém espirrasse ou tossisse na rua, vixe Maria, era um Deus nos acuda, alguns moradores mais irritados logo gritavam: sai pra lá excomungado!  E assim a vida ia seguindo agoniada, o povo se findando nos baldes da tristeza sem saber como contornar tal maldição. Os camundongos e grande parte das ratazanas das autoridades políticas, como de costume, nunca cuidavam do povo direito. A pátria padecia desgovernada. O povo órfão tentando se salvar daquela baita cilada. Sem condições de parar, a maioria das pessoas saía de suas casas para enfrentar o coroado, que este sim, em qualquer lugar se encontrava enfiado. E assim, o povo impelido pelas necessidades, seguia para as fábricas, para os mangues, para as feiras e comércios, construções, para os sinaleiros e para as esquinas da cidade… Não tardou muito a caveira esbranquiçada da morte começou a fazer sua dança macabra, eram dezenas todos os dias. No começo a dança era mais democrática, qualquer um entrava na roda, porém, mesmo em face de tamanha calamidade as tais autoridades continuavam sem dá jeito de cuidar do povo direito e assim, confirmando a dominância da história do lado de quem sempre a corda arrebenta, os mais fracos de dinheiro foram dançando em maior número primeiro. A história de Santo Antão do Livramento apenas cumpria o papel de ser mais uma nesse mundo injusto de nascença que só sabe oferecer para sua gente oportunidades diferentes, que vem a ser, sem rastilho de dúvida, o miolo de tudo quanto há de desavença. Mas tia Valdete sempre dizia que o velho mundo não tem nada a ver com isso, ruim mesmo é a ganância dos homens que vivem em falta com qualquer compromisso. Neste caso desairoso, as diferenças não apenas maltratavam, arrancavam a vida do povo. E o tempo continuava a passar sem alento, o medo fincou morada e toda a gente andava por corredores estreitos sem chance de sair ou voltar, tinha apenas que seguir em frente sem muita força para reclamar. Desse povo trabalhador, Seu Eugênio, dono do bar, lá na praça central, também seguia pelo seu corredor sem poder faltar; a cachaça oferecida há anos no balcão era a garantia do seu arroz com feijão. Seu Eugênio aprendeu com os anos a olhar a vida através do seu balcão e de tanto olhar aquele tempo esquisito colocou sentido nalguns camaradas que todo santo dia se embriagavam, reparou que não pareciam preocupados com o demônio coroado, andavam trôpegos, amarfanhados, levavam à boca todas as porcarias que encontravam pela frente e sequer sofriam com uma mera dor de dente!  E pelas contas apuradas que só o Seu Eugênio sabia fazer, nesse tempo todo que esta peste assolava, nenhuma dessas criaturas tinha sido amaldiçoada! Que coisa esquisita, pensava Seu Eugênio, que sentido fazia este mundo? Pois, Dona Ernestina sem nunca tomar um gole de cachaça, sem nunca sair de casa pelo medo da desgraça, tinha tido sua vida ceifada por esta peste sem graça. E esses bebuns, meu Pai Eterno!? Cismava alto Seu Eugênio.

Pintura de Edvard Munch

Em Santo Antão do Livramento as notícias corriam pela cidade pelas ondas de rádios que noticiavam os mortos espalhados por toda a terra, o mundo em polvorosa, valei-me Nossa Senhora! Mas num desses dias que já ia se encolhendo para a noite entrar, as ondas de rádio propagaram uma notícia danada de aceitar. A voz grave do locutor dizia que os cientistas haviam feito uma grande descoberta e que todos se segurassem porque o fato que seria revelado deixaria todo o mundo assombrado!  O silêncio ocupou a cidade, o povo, todo ouvidos, só queria saber da novidade. O locutor sem mais delongas afirmou: a ciência proclamou que as criaturas que vivem embriagadas pela cachaça o coroado não acha graça! O tempo deu uma paradinha… O povo estupefato se perguntava, será o benedito esse raio de cachaça!? Pois sim, confirmava o locutor empertigado, ficou esclarecido pela tal comunidade científica que se não tomar a vacina, era a manguaça  o melhor remédio para evitar tal desgraça. A notícia correu como uma onda gigante que vai derrubando tudo sem deixar rastros para os andantes. As garrafas de cachaça da velha prateleira do Seu Eugênio desapareceram em questão de segundos, a correria tomou conta de todo mundo!

Pintura de Paul Edman

Salve, salve, a muda que veio da Ilha da Madeira, salve, salve, nossos antepassados escravizados, nosso solo massapê, nossa cana de açúcar, o mosto fermentado da bagaça, do melaço que deu origem a bendita cachaça! E a bebedeira foi geral!  Era cachaceiro pra todo o canto, vó Luísa, vó Tonha, tia Catarina e até mesmo o padre Ramiro que, com medo do pecado, benzia a cachaça para aliviar sua consciência, pois aquilo para ele, coitado, era coisa do diabo! Sem que as autoridades comprassem as vacinas, o mundo estava ébrio com a prescrição do tal “remédio”.  O povo de Santo Antão matutava, enquanto a vacina não chegasse, o jeito era usar máscara e beber cachaça! E assim, um novo fenômeno foi observado, o povo ébrio, esquecia seus medos, suas dores, suas crenças e seus valores que estavam pregados no passado. A ironia é que havia em Santo Antão uma outra sintonia, mais música, mais poesia e mais alegria! As línguas soltas soltavam suas fantasias, a consciência meio embotada viajava com os sonhos e nem se preocupava com a realidade amaldiçoada. O que se delineava nos horizontes de Santo Antão era que aquele povo pacato permanentemente embriagado, começou aspirar por mais liberdade. As pessoas inspiradas faziam mais amizades, de modo interessante enxergavam melhor uns aos outros, enxergavam melhor os seus próprios desejos e começaram a perceber que a coragem que os levou a beber para salvar suas vidas fez deles um povo unido na luta contra o coroado que era maior que qualquer outra batalha que já tinham enfrentado. Então, como nunca se vira antes, as asas desse povo encorajado não se faziam mais de rogadas, farfalhavam livres e poderosas principalmente sobre as cabeças das tais autoridades. Unidos, exigiam mais respeito, mais igualdade e mais dignidade e se não fossem logo atendidos, imediatamente esses chefes eram destituídos e as autoridades evacuadas pelo povo destemido!

Pintura de Remédios Varo

E assim finda-se este conto que carrega nos trilhos da utopia o seu principal vagão. Mas, antes do Zé Fini desta história, conta-se que em Santo Antão do Livramento, mesmo depois da peste ter ido embora, agora, com muita sobriedade e coragem, era o povo que tomava conta das ruas e das bancadas, era um povo autogestionário, onde a liberdade, solidariedade, justiça e esperança, tinham agora um lugar de destaque, um lugar revolucionário!

Josiane Adorno é crítica literária e escritora.