Contos da pandemia (14): O pó na pandemia, de Francisco Barros
16 julho 2021 às 08h24
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Sorvia o pó. E tossia. Era a sua vitamina. Assim os dias passavam. Vivia suspenso, na pandemia, a uma partícula de pó, presa às suas fantasias mais íntimas
(Com o apoio do escritor e doutor em História Ademir Luiz, o Jornal Opção organizou uma seleção de contos escritos por autores goianos explorando o tema da pandemia da Covid-19 — que já vitimou mais de 539 mil brasileiros. A prosa curta mostrou-se não apenas possível, mas necessária, durante a pandemia. O jornal vai publicar um conto por dia e espera que, em seguida, alguma editora publique um livro.)
O pó na pandemia
Francisco Barros
Ele tinha uma obsessão: o pó. Ocupava-se, horas a fio, com o espanador. Era o seu brinquedo de criança. De origem humilde, na infância não teve brinquedos. Mas ganhou do pai uma enxada. De sorte que, adulto, tratava o espanador como uma criança trata o seu brinquedo favorito. Não é de se admirar que fosse alérgico. Espirrava e tossia. Mas isso pouco o incomodava. Guerreava contra o pó. É certo que, com a sua metralhadora, nunca obtinha a rendição final. Perdia as batalhas. Mas não se dava por vencido. Tinha o moral alto. Havia adquirido extrema habilidade com a sua arma. O seu esforço se assemelhava ao de Sísifo.
Intensificava a sua tarefa nos meses mais secos: julho e agosto. Contra ele, juntava-se outro inimigo: o vento. Daí, porque, reforçou o seu efetivo: adquiriu sete espanadores (como as vidas de um gato). Como estava confinado, teria tempo para espanar toda a casa. A despensa, repleta de quinquilharias, era um de seus locais favoritos. Mas o ápice do prazer era quando chegava à biblioteca. A sua endorfina era liberada. Pegava a lombada do livro (A Odisseia) e se deliciava ao limpá-lo. Agia maquinalmente. Um a um. Retirava o detrito depositado pelo ar, pelo tempo, pelo vento. E sorvia o pó. E tossia. E sorvia. E tossia. E sorvia. Aquilo o alimentava. Não mais se via numa tarefa de Sísifo. Era a sua vitamina. A sua razão de ser. Sorvia, sorvia, cada partícula. E assim os dias passavam. Corriam. E assim adormecia. Vivia suspenso, na pandemia, a uma partícula de pó, presa às suas fantasias mais íntimas.
Francisco Barros é jornalista, professor e escritor