Considerações sobre um estudo de Albertina Bertha e sobre o legado de Friedrich Nietzsche*

19 agosto 2017 às 08h59

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Não gosto de Nietzsche; tenho por ele ojeriza pessoal. Acuso-o, a ele e ao Esporte, como causadores do flagelo que vem sendo a guerra de 1914

Lima Barreto
A Sr. D. Albertina Bertha é um dos mais perturbados temperamentos literários que, de uns tempos a esta parte, tem aparecido entre nós.
Muito inteligente, muito ilustrada mesmo, pelo seu nascimento e educação, desconhecendo do edifício da vida muitos dos seus vários andares de misérias, sonhos e angústias, a autora do “Exaltação”, com auxílio de leituras de poetas e filósofos, construiu um castelo de encantos, para seu uso e gozo, movendo-se nele soberanamente, sem ver os criados, as aias, os pajens e os guardas.
Do alto do seu castelo, ela percebe as casas dos peões e homens de armas lá embaixo, rapazes com o solo e só a flecha da igreja do burgo se ergue um pouco acima dele. Ela não lhe adivinha os obscuros alicerces robustos.
Quando li o seu romance, lembrei-me do drama que a milhardária americana Clarence Marckay leu a Jules Huret quando ele andou em alta reportagem pelos Estados Unidos. Mme Clarence era casada com o rei dos telégrafos americanos, que lá não são ou não eram monopólio do Estado. O drama da rainha dos cabos fazia apologia do amor livre, “do amor integral”, sobre o amor platônico.
Depois de Balzac, de Daudet, Maupassant, etc., o romance “Exaltação”, da D. Albertina Bertha, na feitura, nos surge cheio de um delicioso anacronismo. Aparece-nos como uma novela de grande dama, linda e inteligente, para quem a existência só tem o merecimento e mesmo é o seu principal fim o de determinar o amor de um casal, senão de condição real, mas suficientemente principal.
O último livro da Sr. D. Albertina Bertha – “Estudos” – é talvez mais do que o seu romance de estreia demonstrativo da originalidade do seu temperamento e do seu curioso talento, tanto mais curioso quanto se trata de uma mulher e de uma mulher brasileira.

O que caracteriza o pensamento de D. Albertina é se não certa difusão de ideias, uma falta de nitidez, de clareza e coerência de ideias.
Eu me permitira dizer-lhe, se não temesse desagradar-lhe, que, apesar de todo o seu apelo à Grécia, a tal Helade, a eloquência torrencial e tumultuosa do seu escrever, o vago e o impreciso de suas concepções, o constante borbotar de ideias, sub sua pena, que se emaranham e se tecem inextricavelmente, lhe dão mais parentesco com os luxuriantes poetas hindus do que com os helenos cediços.
Neste seu último livro, a Sr. D. Albertina, no seu excelente estudo sobre Nietzsche, compara o “Super-Homem” deste ao Nirvana búdico e ao paraíso cristão.
Os termos não se prestam a que se estabeleça qualquer comparação: admitindo, entretanto, que se pudesse fazer, bastam estas palavras da autora, explicando a moral do “Super-Homem”, para mostrar o absurdo de tal coisa. Ei-las:
“Aos primeiros, às naturezas plenas (os “Super-Homens”), a esses seres privilegiados, artistas do pensamento e da ação, que sabem governar-se, manejar as paixões em proveito próprio (tomem nota), desviar as reações, ela (a tal moral dos Super-Homens) tudo permite para a sua existência, o seu equilíbrio na vida universal: aventuras, incredulidades, repouso, o próprio excesso, a impiedade, a rudeza”…
É possível admitir sujeito de tal moral digno do Paraíso ou do Nirvana? Não há quem hesite em dizer – “não” – por menos que conheça a concepção do Paraíso, que é muito plástica e a do Nirvana, embora extremamente abstrata.
A autora há de me desculpar essa rudeza, essa franqueza; mas seria hipocrisia não lhe falar assim. Dos meus vícios, que não são muitos, creio não ter o da hipocrisia.
Não gosto de Nietzsche; tenho por ele ojeriza pessoal. Acuso-o, a ele e ao Esporte, como causadores do flagelo que vem sendo a guerra de 1914.
Ele deu à burguesia rapace que nos governa uma filosofia que é a expressão de sua ação. Exaltou a brutalidade, o cinismo, a amoralidade, a inumanidade e, talvez, a duplicidade.
Nenhum outro homem, mesmo em tom de ironia, falou tão mal da caridade e da piedade; entretanto, D. Albertina, a págs. 35 do seu livro, pede piedade para ele. Eu lhe dou, de bom grado; mas continuo.
Não se compreende que a humanidade, só podendo subsistir pela associação, possa prescindir de sentimentos que reforçam essa associação e a embelezam.
Nietzsche é bem o filósofo do nosso tempo de burguesia rapinante, sem escrúpulos; do nosso tempo de brutalidade, de dureza de coração, do “make-money” seja como for, dos banqueiros e industriais que não trepidam em reduzir à miséria milhares de pessoas, e engendrar guerras, para ganhar alguns milhões mais.
São eles sem educação e sem gosto algum; com a crueza dos “condottiere”, não tem como estes o senso da beleza e da arte.
Nietzsche, devido à convivência em Basileia com Burckhardt, tinha uma grande admiração por essa espécie de gente; mas como sempre, a sua admiração se encaminhava para o pior, para Cesar Bórgia, o ignóbil Cesar Bórgia, certamente fratricida e, talvez, incestuoso.
Os seus comentadores, especialmente o Sr. Jules Gaultier, o engenhoso descobridor do Bovarysmo, tem procurado extrair das elucubrações de Nietzsche um sistema de filosofia; tornam-se, porém, mais confusos do que ele.
Entretanto, apesar de não se poder tirar dos seus livros um pensamento nítido, claro e harmônico, o que, em geral, se depreende deles é um apelo à violência, à força, um desprezo pelo refreamento moral, pela bondade, pela caridade, pela piedade, até pelo amor que, para ele, não é mais um grande sentimento de resgate e um anelo à perfeição, mas uma espécie de vinho de bacantes em festas dionisíacas.
Ele inspirou essa guerra monstruosa de 1914 e o esporte a executou.
Spencer, em 1902, no seu último livro – “Fatos e comentários” – no artigo “Regresso à Barbárie”, previa esse papel retrogrado que o atletismo havia de representar no mundo.
Condenando-os, sobretudo o futebol, o grande filósofo dizia muito bem que todo o espetáculo violento há de sugerir imagens violentas que determinarão sentimentos violentos, dissecando a simpatia humana, enfraquecendo a solidariedade entre os homens. Nietzsche, catecismo da burguesia dirigente, combinando-se com uma massa habituada à luta ou a espetáculos de lutas, só podia dar em resultado essa guerra brutal, estupida, cruel, de 1914, que continua e não resolveu coisa alguma.
D. Albertina, que parece não ter percebido essa influência nefasta do filósofo de que é admiradora, diz em alguma parte do seu livro que é cristã.
Admiro-me muito que pessoa tão inteligente, cuja cultura eu desejaria ter, possa fazer semelhante profissão de fé, quando Nietzsche, no seu “Anti-Cristo”, com a sua habitual falta de senso histórico, chama S. Paulo, essa alma extraordinária da epístola a Filemen, anarquista, cujo único propósito consistia em derrubar o Império Romano, que já estava em adiantado estado de putrefação, quando ele pregava a caridade e o amor com a sua palavra de fogo e o seu coração cheio de fé nos destinos da humanidade.
De novo, peço desculpas à ilustre autora, cuja delicadeza da oferta de ambos os seus livros muito me tem desvanecido; mas este último é tão cheio de ideias e opiniões a ponto de sugerir outras ideias e outras opiniões da minha parte, que eu queria explicá-las com mais serenidade, mas não posso.
O seu estudo sobre a “Evolução do Romance” é magistral, embora lhe faltem referências ao romance russo, como já foi notado. Creio que a autora dos “Estudos” não desconhece a influência dele sobre a novela francesa dos anos próximos. Até em Maupassant é bem sensível à influência de Tourgueneff.
O seu espírito nitichista (vá lá) levou a autora do “Exaltação” a exaltar o coronel Rapagneta ou Rapagneto. Não vejo porque.
O Sr. D’Annuzio é um retrógado, os seus ideais não são os dos nossos tempos; ele sempre sonhou com um ducadozinho italiano da idade média, em que ele pudesse dar expressão aos infrenes pensadores para a volúpia e a crueldade. Não há nele nenhuma simpatia pelos homens: a sua arte não é uma interrogação diante do angustioso mistério da nossa existência, do destino e sentimento da nossa vida; é uma apologia do sangue, da volúpia e da crueldade. A musicalidade da língua italiana ilude muito…
Duque de Fiume, ele encheu as prisões e, se não faz execuções, com um machado medieval, tirado a algum museu italiano, é porque teme o inimigo mais poderoso que o vigia.
Cesar Bórgia, o terrível, fez o mesmo diante de Carlos VIII, rei de França.
Não me alargarei mais, “Estudos” é um livro de fragmentos e livros desses não podem ser analisados, parte por parte, sem que o artigo que se escreva sobre e tome proporções que um jornal não comporta.

O que eu quis fazer foi caracterizar o espírito da autora e se, aqui ou ali, houve alguma aspereza, é porque é um livro de ideias e as minhas, se as tenho, são opostas às da ilustrada autora do “Exaltação”, cujo saber admiro muito e não cesso de preconizar.
Há de me perdoar qualquer observação menos bem dita, pois penso, e a autora melhor do que eu sabe, que, quando se tem opiniões sinceras, se tem paixão.
*Publicado na “Gazeta de Notícias”. Rio de Janeiro, 26 de Outubro de 1920, p. 02, sob o título de “Estudos”.
Lima Barreto (1881-1922). Romancista e jornalista.