Consciência e trapaça ou até quando, Mr. Hyde?
26 junho 2022 às 00h00
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A trapaça, portanto, é violar a própria compreensão ética para geração de poder ou de ocupação de espaços através da manipulação da consciência do outro
Salomão Sousa
Especial para o Jornal Opção
À proporção que crescem os índices de violência no seio da sociedade e as ações extremadas desonram a atividade política ao redor do planeta, sinto cada vez mais a necessidade de compreender os mecanismos que o indivíduo adota para se relacionar com as questões públicas sem que a sua consciência consiga resguardar limites éticos compatíveis com a evolução do conhecimento.
Decisões para enriquecer ou para obter prazer, quando executadas por intermédio de atos danosos ao outro e à preservação das condições de sobrevivência da humanidade, não são atitudes que contradizem a herança da Civilização? Por que o conhecimento não serve de mecanismo para inibir o afã humano de domínio pela trapaça? Afinal, civilizar-se significa erigir estruturas que melhor ajustem as condições para o homem estar presente no mundo.
É uma expressão forte invocar o termo “trapaça”, mas H. Miles, ao estudar o comportamento dos orangotangos, diz que, para poder mentir é “preciso ver os fatos a partir da perspectiva de outra pessoa e atuar de maneira que se invalide sua percepção” (dessa outra pessoa). Através dessa assertiva, fica claro que a trapaça é um método deliberado de valer-se de subterfúgios para levar o outro indivíduo a usar a própria consciência contra ele mesmo. A trapaça, portanto, é violar a própria compreensão ética para geração de poder ou de ocupação de espaços através da manipulação da consciência do outro.
Mas não podemos deixar de reconhecer que a trapaça é um componente da consciência de quem a utiliza, pois, ao usar de artifícios quase sempre carregados de sonegações ou mentiras, o indivíduo está agindo por si mesmo, ciente das consequências de sua ação, inclusive a de permanecer sujeito às penalidades da justiça. Não quer dizer que a trapaça seja praticada de forma inconsciente ou num momento de ausência de consciência. O indivíduo só não está de posse da consciência quando se encontra com os neurônios desligados por um desmaio ou por algum outro estado (químico ou não) que o impeça de estar interligado com a realidade. Aquele que trapaceia busca o domínio dos espaços de poder e de posse da riqueza para si ou para seu grupo, geralmente por acordo firmado pelos membros de uma “rede de proteção”.
Anterior à trapaça, ainda entra a forma como o indivíduo se instala dentro da realidade, conforme esclarecem os estudos de Jean-Paul Sartre. Na composição da consciência, entra primeiramente a compreensão do Ser-em-si, que é a relação do indivíduo com a realidade como parte íntegra dela, agindo com uso da consciência ou desvirtuando-a. Nesse estágio, o indivíduo é afetado pelos movimentos que constroem a história de seu tempo.
Por outro lado, enquanto Ser-para-si, que age usando a própria consciência para ampliar a riqueza e o poder com os componentes absorvidos da realidade, transforma-se ao compreendê-la e para dela tomar posse. O desejável é que, enquanto Ser-para-si, o indivíduo justo, que não invalida a moral, trabalhe para que a realidade permaneça ordenada de forma a imperar o sentimento de conforto. Enquanto Ser-para-si, numa evolução normal da atitude humana de existir, em que não houvesse desarranjos da moral, de distorção da justiça e de desequilíbrio econômico, a sociedade alcançaria o sentimento de compreensão mútua e de ajuste de vivência comum, onde os interesses seriam definidos pela interface das divergências. Num ambiente, com oferta de imagens ordenadas, todos os indivíduos (enquanto Ser-para-si) encontrariam condições de alcançar a consciência amadurecida. A consciência amadurecida – pela oferta igualitária de conhecimento — atuaria por si mesma, e estaria livre de impulsos de domínio externo/estranho.
Existem duas expressões que se manifestam no momento em que um indivíduo pratica uma ação que não corresponde à compreensão e aceitação por um outro: “Põe a mão na consciência” e “Você não tem consciência”. Só que a consciência, muito mais do que a expressão de uma posição individual, é — pela definição da neurociência — a descarga que os neurônios usam, valendo-se de dados armazenados pela memória, para que o indivíduo possa manifestar compreensões pessoais (que acabam refletindo nas suas ações) sobre a forma de pertencer e de agir enquanto ser gregário. Dessa forma, é de bom alvitre que o indivíduo mantenha metas de absorções constantes de conhecimento da realidade para ajustar as imagens que irão contribuir para que a sua consciência não fique defasada em relação ao processo evolutivo da Civilização. Se não há ajuste das imagens para evolução da consciência (se é que um leigo pode empregar essa expressão), sobretudo de conhecimento dos eventos históricos, insistimos e permitimos em dar apoio a processos que já se mostraram — em algum momento da história — serem inválidos para a sociedade.
Portanto, a consciência não é assunto só da neurociência. Envolve psicologia, comportamento social, educação, política, religião, economia, enfim, está relacionada com tudo que estiver encobrindo a existência do indivíduo. O ambiente emite as imagens que serão armazenadas nos neurônios, sendo que o cruzamento dessas imagens vai gerar a consciência individual. Assim, a consciência tanto é gerada quando será manifestada na relação de um indivíduo com os demais a partir daquilo que permite a ele gerar um estado de compreensão norteador de suas ações. Só conseguimos compreender e participar com os rudimentos que acumulamos com a aprendizagem, sem ruídos de trapaças e de desencantos, que entorpecem a consciência.
Ao deixar de usar a própria força física, substituindo-a por máquinas para a execução de suas tarefas, os homens não estariam perdendo estágios de ampliação da consciência?
Na busca de compreender essas questões, cheguei a estudar um pouco de António Damásio, especialista em estudos sobre a consciência. No entanto, em que pese a importância de suas descobertas sobre as emoções, que nos levam ao conhecimento de nós mesmos, usar os seus conceitos seria tratar de um assunto que eu teria de gastar uma vida inteira para ter uma mínima parcela de domínio, além de transformar o debate numa erudição talvez incompreensível. E temos urgência de compreender onde o indivíduo está enfraquecendo as formas de gestão dos interesses das nacionalidades. Temos de abolir o sentimento geral de desconforto de existir.
Em seu último livro (“Sentir e Saber — As Origens da Consciência”), ao qual não tive acesso, esse neurocientista português estuda a inteligência artificial e diz que um robô não substituirá o homem, pois nunca será constituído de consciência. Passei a sentir a necessidade de fazer algumas indagações desde o assassinato do índio pataxó, em Brasília. Será que os homens estão se robotizando diante das máquinas? Ao deixar de usar a própria força física, substituindo-a por máquinas para a execução de suas tarefas, tais como fazer colheitas e remoções de entulhos, de comparecer a reuniões de forma não presencial, até mesmo deixar de pegar nas vísceras para procedimentos cirúrgicos, os homens não estariam perdendo estágios de ampliação da consciência? Tornam-se pessoas isentas de reações emotivas, ficando com o self sacrificado, máquinas automáticas, indiferentes à vida. Só respeitamos a vida com o armazenamento de imagens vivas inscritas nos neurônios com o rastro cultural/visceral da civilização.
Só mais algumas pequenas observações técnicas sobre a importância da consciência. É ela que constrói o self, aquilo que constitui a personalidade do indivíduo, com sua singularidade ética e sua capacidade de interpretação e criação de bens para a humanidade. Essa singularidade humana da consciência, que se constrói na relação social, estão implícitos conceitos como moral, justiça, poder e produção de bens econômicos. É algo tão singular que ninguém é obrigado a agir contra a própria consciência, conforme a escusa apontada no artigo 5º, inciso VIII da Constituição: “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”.
Crença religiosa, convicção filosófica ou política são imagens constitutivas da consciência. Por isso — em que pese a amplitude perigosa que pode ensejar no momento de sua interpretação —, o dispositivo da Constituição diz que ninguém será “privado de direitos” e poderá “eximir-se” e recusar-se de obrigação legal”, mas não há indicação que poderá “invocar direitos” para busca de implantação de vontades pessoais ou para trapacear em nome da consciência visando gerar comportamento social ou ganhos para grupos de uma “rede de proteção”. É recomendável, portanto, que o dispositivo constitucional seja abolido para não gerar conformismo na estrutura administrativa para impedir o acesso ao conhecimento, livrando as consciências da disponibilidade à manipulação.
O homem estaria correndo o risco, no processo de evolução da vida, de se tornar definitivamente um robô, passando a atuar de forma mecânica, sem emoções e compromissos éticos?
Tão interessante o estudo sobre o assunto que António Damásio chega a dizer que a consciência poderá ser desativada caso um DNA cerebral for alterado. Como os seres vivem em mutação, em ajuste permanente, já que a consciência vai se tornando irrelevante, o homem não estaria correndo o risco, no processo de evolução da vida, de esse DNA ser desativado, tornando-se definitivamente um robô, passando a atuar de forma mecânica, sem emoções e compromissos éticos?
Diante desses questionamentos, resta indagar se a consciência passou a se constituir de imagens frias (ou de olhares mortos?), sem humanismo, já que não é mais necessário contato direto com o ambiente, — que é a sua forma de captar imagens alimentadoras dos neurônios —, tal como encostar no outro para compreender que são idênticos, ou a consciência está sendo traída por mecanismos de trapaça, onde o indivíduo faz um jogo voltado para o interesse próprio ou para a salvaguarda dos integrantes da “rede de proteção”, comparecendo fisicamente diante da sociedade para enganá-la? Por mais que compreenda, conscientemente, a injustiça de uma ação, pratica-a para atrair lucro e prazer só para si mesmo, traindo o self e satisfazendo o ego.
Ao sermos partícipes de um período temporal em que vai ficando difícil reconhecer todas as trapaças que cercam a nossa consciência, são tantas as opções de interpretação que precisamos falar com a nossa própria voz, com autenticidade e vigilância, em respeito à nossa consciência, tendo a obrigação de compreender os processos construídos para nos ludibriar. Quando não apresentamos nosso posicionamento estamos permitindo que os trapaceiros instaurem a sua vontade, sem se importarem que a vida fique em risco. E não há outra alternativa — só através da construção do conhecimento da realidade conseguimos ordenar corretamente a nossa participação no processo.
Era da insensatez e trapaça comunitária
Valho-me de uma palavra da historiadora Barbara W. Tuchman para definir o tempo em que vivemos — “insensatez”. Uma era de insensatez, não por imperar guerras desarrazoadas, mas pela trapaça comunitária, pela trapaça administrativa, pela trapaça do afeto, onde todos têm ciência de que as suas ações contrariam as próprias consciências e, sobretudo, sabem que estão descumprindo o contrato com a própria existência. Os dirigentes de instituições e de projetos atuam no mesmo formato, já que todos os projetos estão sendo desvirtuados por “redes de proteção” firmadas e praticadas de forma muito secreta e pelas portas dos fundos. Tanto o Estado como as instituições e os projetos, bem como os indivíduos, tudo acaba destroçado pelo atropelamento da “rede de proteção”. Na “rede de proteção”, aqueles que compõem o grupo “um segura na mão do outro”, com o disfarce de “segurar na mão de Deus”, podendo transferir para a máquina a responsabilidade pelo desastre. E nunca sabemos em quem se esconde o mascaramento do monstro.
No momento da manifestação do homem em análise na obra de Jean-Paul Sartre, que é aquele Ser-para-si, ergue-se o conceito de liberdade. Se o homem se encontra na realidade, ele procura desincumbir-se das ações conforme as contingências a ele apresentadas para ajustá-las aos seus interesses. Só que ele terá de contornar várias dessas contingências, se a sua compreensão de domínio da realidade é limitada pela consciência, isto é, se ela não estiver castrada pela trapaça. A ação libertária tem de ser criadora de acordos com os desejos e necessidades da sociedade, e não para contaminar as demais consciências.
O indivíduo não está no mundo só para satisfazer, solitariamente, o seu desejo ou de seu grupo, através de uma “rede de proteção” definida por sua consciência e com os métodos ilusionistas da trapaça. As instituições, o próprio poder e até mesmo a liberdade, se ordenam quando todos os estados conscientes são contemplados e se veem vitoriosos. Quando a atuação social ou política se dá por “redes de proteção”, com ocultamento de informações ou frustração do regulamento da justiça, há a desvirtuamento do sufrágio para contaminar a evolução do tecido social.
Os pulmões cheios de gás lacrimogêneo
Dois livros retratam com grande extensão o posicionamento do indivíduo dentro do processo histórico em eventos marcantes da história da Humanidade. Apesar da busca de resultados bem opostos durante esses dois eventos (Nazismo e Revolução Francesa), o método usado foi idêntico: o morticínio em massa pela câmara de gás e pela guilhotina. Portanto, esses livros servem para busca de compreensão da consciência dos indivíduos tanto nos momentos extremados e autoritários quanto nos movimentos de resistência aos governos totalitários.
São “Eichmann em Jerusalém — Um Relato Sobre a Banalidade do Mal”, de Hannah Arendt, que aborda as atividades de Adolf Eichmann (figura real) dentro do nazismo, com a autora mostrando que ele detém mente normal; e “Os Deuses Têm Sede”, de Anatole France, que acompanha a vida de Évariste Gamelin (personagem fictício), membro do Tribunal Revolucionário, instalado na época do “Terror” da Revolução Francesa. Os dois livros ilustram o debate de Zygmunt Bauman sobre a moralidade do homem atual.
Interessa-nos o romance de Anatole France — conforme lista preparada por estudiosos, um dos cinquenta livros de ficção mais importantes do Século XX que tratam de fatos históricos; bem como uma das obras recomendadas por Afrânio Coutinho —, pois retrata, igualmente, o homem com personalidade normal, que envia magotes de adversários à guilhotina sem que isso afete seu comportamento familiar e social ou provoque abalos em sua consciência: “Ao som dos sinos e dos tambores, ele dá seu veredito com os colegas e cor-re para casa para abraçar sua mãe e pegar sua echarpe”.
O cidadão Gamelin é indicado para o Tribunal Revolucionário num momento em que as finanças de sua família estão depauperadas, pois os trabalhos artísticos que produz deixaram de atender as diretrizes dos jacobinos. Após assumir as funções de juiz, que desempenha sem grandes questionamentos, pois, para condenar, conta com os indícios apontados pelos delatores. Basta analisar o delatado com o olhar para firmar consciência de que pode assinar o veredito de enviá-lo à guilhotina.
De posse do cargo, passa a dar vereditos que cumprem as suas próprias vinganças. Manda, injustamente, à guilhotina Jacques Maubel, por entender que ele tirou a virgindade de Élodie, sua amante; bem como Chassangne, amante de sua irmã Julie. A sua irmã chega a pedir à mãe para interceder junto ao irmão em favor de seu amado, mas os interesses financeiros da família sobrepõem aos ditames da consciência. Para negar atendimento à solicitação da filha, lembra que, se acontecer alguma coisa à Gamelin, “eu estaria morta de miséria e fome”.
Assistimos, portanto, ao longo da história, a ação dos indivíduos que, tão logo juram ação justa sob o olhar da população em rede nacional, com as mãos estendidas sobre a Constituição, desvirtuam os propósitos da justiça e da nacionalidade, contrariando inclusive a própria consciência. Acima da consciência, está a proteção dos próprios interesses e de seu grupo por uma acordada “rede de proteção”.
Recentemente, ao trocar impressões com um indivíduo da elite do agronegócio sobre a elevação do dólar, que resultou no sumiço de itens da cesta básica das prateleiras do comércio, trazendo fome às pessoas de baixa renda, recebi resposta semelhante àquela da mãe de Gamelin: “Não me preocupo. Basta eu dar um telefonema e a picanha chega à minha mesa, nem que ela tenha de vir do exterior”.
Nenhum processo revolucionário ou eletivo — é o caso de indagar — garante que o indivíduo que assume o poder cumprirá os ditames de sua consciência ou contribuirá para elevar o nível cultural de um país? Em determinada altura da narrativa do romance de Anatole France, certo personagem diz a um livreiro que (cinco anos após a Revolução Francesa) os livros de ciências sociais devem estar sendo bastante procurados. O livreiro afirma que os leitores continuam interessados em outras leituras e, para justificar, puxa um romance sob o balcão cujo título indica conteúdo libertino.
É o caso de complementar Zygmunt Bauman, que diz que as ideias de “bolchevismo”, “fascismo” ou “totalitarismo” não existiam quando Anatole France escreveu “Os Deuses Têm Sede”, de 1912. No entanto, existia o termo “Absolutismo”, que a Revolução Francesa veio para botar abaixo. O Absolutismo corresponde aos governos do “mandante total” da modernidade, que não quer distribuir o poder com o Judiciário e o Legislativo, sempre com “total desprezo pela natureza e pela verdade (sic Zygmunt)”. Importante lembrar que a separação dos três poderes também é um instituto democrático herdado da Revolução Francesa.
Esses regimes absolutos sempre encontram sequazes dispostos a trabalhar para “tiranos”, como o próprio Bauman reconhece nos debates do livro “Cegueira Moral. Ele cita Emil Cioran, para quem os jovens da era Robespierre e Marat “expressaram a doutrina da intolerância e são eles que a colocaram em prática. São eles que estão sedentos — de sangue, tumulto, crueldade.” É o caso de estender as palavras de Cioran para os atuais Eichmanns e Gamelins, defensores da democracia tutelada por militares. Atuam tão próximos de nós que sentimos o cheiro de pólvora e os pulmões cheios de gás lacrimogêneo.
Sábios, desprezo pela tolerância e consciência desperta
Quase são inúteis essas observações sobre o comportamento do homem enquanto ser atuante da história. Tão logo é desembaraçado um conflito, imediatamente surgem novos, demonstrando que “é uma falácia a harmonia”. Basta ver a revolução tecnológica do final do Século XX, que trouxe conforto, agilidade, ferramentas para a Medicina e diversos outros setores, e, no entanto, adoeceu o indivíduo pelo isolamento.
Como um dos intelectuais que mais buscou compreender o processo da construção da liberdade — que para ele “não existe se for para ser subvertida” —, Isaiah Berlin, no opúsculo “Uma Mensagem para o Século XXI”, publicado no Brasil em 2016, trata dessa questão da sucessão dos eventos históricos. Para ele, “(…) a história nos ensina que suas consequências raramente são as que foram antecipadas; não há garantias e muitas vezes nem uma probabilidade suficientemente alta de que algumas ações nos levem a uma melhora”.
E enfatiza que “a obrigação pública é evitar sofrimentos extremos”, e aconselha que a ação pública mantenha obediência aos “valores universais”, com benefícios que sejam comuns, para que as sociedades possam sobreviver. Quanto às suas previsões, se ainda estivesse entre nós, Isaiah Berlin teria de continuar tratando do processo histórico com pessimismo. As grandes tiranias não estão se despedaçando, e, como ele mesmo afirmou, a democracia liberal está se espalhando, contudo, ao revés de seu desejo, pois o avanço continua “com desprezo pela racionalidade e pela tolerância”.
O sábio não permite que imagens desvirtuadas contaminem a sua consciência, e muito menos menospreza o indivíduo que não compartilha de sua compreensão. Não ilude nem humilha o outro
Além de intérprete exemplar, Isaiah Berlin é um sábio preocupado com a construção da harmonia e com a permanência da liberdade, que nos acautela sempre para os avanços das fronteiras totalitárias.
Os sábios são aqueles que — mesmo que não tenham passado por uma completa imersão numa cultura complexa — conseguem discernir o que é bom para o conjunto dos indivíduos. O sábio reconhece que, em algum momento, o processo de formação da consciência sofre contaminação (principalmente sonegação de informação para impedir ações fomentadoras de ilustração do imaginário libertário) para que a sua expressão se manifeste sem sabedoria. No entanto, o sábio não permite que imagens desvirtuadas contaminem a sua consciência, e muito menos menospreza o indivíduo que não compartilha de sua compreensão. O sábio não se oculta pelas portas dos fundos, não assume a mutação do monstro, não ilude nem humilha a consciência do outro.
Em 2022, faleceu aos 108 anos o escritor esloveno Boris Pahor, que escreveu um dos livros mais aterrorizantes sobre o totalitarismo. Em “Necrópole”, que traz reflexões sobre os campos de extermínio nazistas (nos quais passou parte de sua vida), ele menciona o caso de uma turista que, ao deparar com o forno da câmara de gás, pergunta “O que é?” A pergunta — para Pahor — pode demonstrar que, para a turista, é mais confortável não se comprometer com o terror nazista, mas confirma “até que ponto a consciência humana pode ser lerda para despertar”.
Isaiah Berlin e Boris Pahor, com os alertas permanentemente acesos em suas obras, sinalizam que devemos manter nossas consciências despertas.
Salomão Sousa, poeta e crítico, é colaborador do Jornal Opção.