Conheça a história do Cine Fátima, o Cine Paradiso da cidade de Inhumas, em Goiás

16 junho 2024 às 00h00

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Marina Teixeira da Silva Canedo
Especial para o Jornal Opção
Dentre as inúmeras lembranças de minha infância e adolescência, está um antigo cinema de Inhumas, minha cidade natal, e que já não existe mais. É o Cine Fátima. Ele foi o “Cinema Paradiso” de Inhumas. Foi lá que entramos em contato com o mundo exterior. Naquele tempo (e bote tempo nisso) ainda não havia telefone na cidade. Os meios de comunicação eram muito incipientes. Não havia emissora de rádio, que só passou a existir tempos depois, e jornais só os de Goiânia. Quando a televisão foi implantada em Goiás o Cine Fátima já havia fechado suas portas.
O cinema foi uma feliz iniciativa de um homem visionário, Mamédio Calil (1900-1973), de origem sírio-libanesa, nascido em Talabeya, região do Vale do Bekaa, no Líbano, e que, por uma sorte do destino, veio aportar em terras goianas e, para nosso regozijo, em Inhumas. “Seu” Mamédio foi o patriarca de numerosa e importante família inhumense, e trazê-lo à memória só nos concede boas recordações. Sua mulher era a abdicada e amorosa dona Crioula, apelido pelo qual era conhecida a senhora Higolina Peixoto (1904-1998). O casal teve sete filhos, dentre os quais duas mulheres, Fátima e Gália, sendo esta última a minha maior amiga de infância.
O nome do cinema foi dado em homenagem à sua filha mais velha, Fátima. A construção do prédio destinado ao cinema ficou pronta em 1937. Nessa época meus pais ainda não haviam chegado a Inhumas. Mas, antes disso, no tempo ainda do cinema mudo, o Mamédio inaugurou o Cine Ítalo-Turco, em sociedade com o italiano José Jácomo, que funcionava em um armazém adaptado para tal fim. A população, com humor e talvez falta de entendimento, começou a chamá-lo de “intala o turco”, o que fez com que Mamédio mudasse o nome para Cine Fátima. Saber que Inhumas, pequena cidade na década de 1930 e longe de todos os recursos, contou com um cinema mudo, nos parece uma utopia, nascida dos anseios e projetos desse homem empreendedor que foi Mamédio Calil.

Tal como em “Cinema Paradiso” (1988), filme do italiano Giuseppe Tornatore (1956), e que é uma ode à sétima arte, o Cine Fátima nos fez sonhar e ampliou os limites de nosso pequeno mundo. Este belíssimo e emocionante filme foi enriquecido pela trilha sonora de Ennio Morricone, que lhe acentuou o tom melancólico e saudosista. Na ficção, o garoto Totó transforma-se em um grande cineasta. “Cinema Paradiso” mostra como esta arte pode influenciar a vida das pessoas, fato esse que se deu conosco. Nenhum de nós dedicou-se em desvendar os mistérios da sétima arte, como o protagonista do filme, mas nos fez mergulhar em outras dimensões, de onde visualizávamos o mundo exterior, Hollywood e o cinema mexicano, com seus filmes e atores famosos. Também o cinema nacional nos foi apresentado por meio das chanchadas, típicas da época.
Era comum, durante as projeções, que a fita se rompesse, o que gerava apupos da plateia e a intervenção do “lanterninha” para restaurar a ordem. As sessões eram diárias. No sábado, depois do filme, passava-se um seriado. Destes, lembro-me do “Zorro”, “O Máscara de Ferro”, “Tarzan” e outros que me escapam à memória. Esses seriados foram os precursores das atuais séries de TV e das novelas de televisão. Ninguém queria perder os próximos episódios, que sempre terminavam com os heróis em perigo.
Elizabeth Taylor, Ava Gardner e John Wayne
Filmes como “La Violetera”, com Libertad Lamarque e Sarita Montiel, “No Tempo das Diligências” (do diretor John Ford), com John Wayne, ator-símbolo dos filmes de faroeste, “À Noite Sonhamos”, a vida de Chopin, com Cornel Wilde e Merle Oberon, cowboys com Tim Holt e Tom Mix, e tantos outros filmes que marcaram a nossa vida e ampliaram nossas fronteiras, foram vistos pela juventude inhumense.
Elizabeth Taylor, Ricardo Montalban, Grace Kelly, Pedro Vargas, Robert Taylor, Stewart Granger, Pedro Armendáriz, Heddy Lamar, Ava Gardner, Cary Grant, Errol Flinn, Maria Félix, Oscarito e Grande Otelo são alguns dos atores que nos encantaram. Qual menina não queria ser linda como essas atrizes? E qual menino não queria ser corajoso como os “cowboys” e viver aventuras como Tarzan? E a semana não era completa se não fôssemos ao cinema.
A amizade que o “seu” Mamédio tinha pelo “seu” Felisberto Jácomo fazia com que as sessões não começassem antes que o amigo chegasse, e toda a plateia aguardava a chegada de Felisberto. De origem italiana, Felisberto Jácomo foi também patriarca de importante família em Inhumas.
O Cine Fátima propiciou a mim, além do mundo fascinante dos filmes, o surgimento de uma paixão de infância, que foi o amor por pombos. Era dentro do forro do telhado do cinema que vivia um bando de pombos, dos quais capturei alguns com alçapão e milho e os criei com devotada obsessão. Tempos depois, o prédio que abrigava o cinema não foi demolido, mas foi remodelado para outras finalidades.
Nossa infância e adolescência não teriam sido tão ricas em conhecimento e fantasia não fosse o poder transformador do Cine Fátima, lugar mágico e único, onde íamos colher sonhos e ampliar nossos horizontes. Foi palco também de muitos namoros “no escurinho do cinema”. Depois dele outros surgiram, mas nenhum teve a importância histórica, o significado e o charme que teve o saudoso Cine Fátima. Foi um paraíso na incipiente vida cultural de uma cidade do interior goiano, há muitas décadas. Foi o verdadeiro Cinema Paraíso (ou Paradiso), que ainda povoa nossa memória e imaginação.
Marina Teixeira da Silva Canedo, historiadora, cronista e poeta, é colaboradora do Jornal Opção.