Carlos Russo Jr.

A história do Hino Nacional Francês e de seu autor (da música e da letra) constitui um instante especial no teatro da vida. Uma aventura feita de glória e de esquecimento, de luta e de poder, de despotismo e de ideais, de sofrimento e conquistas.

Nós iremos contá-la em quatro atos.

Primeiro ato

Ano de 1792, três anos após a queda da Bastilha.

A França revolucionária era ameaçada pela coalizão do absolutismo monárquico, e os exércitos austro-húngaros estavam a alguns quilômetros das fronteiras alsacianas. Enquanto isso, a Assembleia Nacional hesitava entre a guerra e a paz.

Os Girondinos, em minoria, eram a favor da guerra por crerem que ela lhes devolveria o poder político, e a esquerda, os Jacobinos, eram pela paz. Ao final dessa luta política, o vacilante rei Luis XVI assinaria a declaração de guerra.

A última grande cidade francesa a fazer fronteira com o Rio Reno é Estrasburgo. No dia 25 de abril de 1792, o prefeito Dietrich, um aristocrata progressista que esposara a causa da liberdade, recebia das mãos do emissário da Assembleia a declaração de guerra que, em breve, atravessaria o Reno e seria entregue às tropas inimigas acantonadas.

Não teve alternativas. A seu chamado, todo o povo acorreu à praça principal e a guarnição, ansiosa pela guerra, desfilou seus regimentos.

As bandas tocavam o primeiro canto de guerra da Revolução, o “Ça Ira”, que em breve as massas poriam de lado. Nas ruas, nos cafés, nos jornais, ouviam-se e liam-se proclamações de luta como: “Aux armes cytoyens!”, “L’étandart de la guerre est deployé”, “Marchons, enfants de la liberté!”

Ao final da tarde, Dietrich reuniu os oficiais para a despedida do Exército do Reno, que deveria partir contra as tropas reacionárias agrupadas do outro lado do rio. Entre os discursos e brindes, o prefeito voltou-se para o capitão Rouget de Lisle, que escrevera há algum tempo uma bela “Ode à Liberdade”, quando da promulgação da constituição francesa, e pediu-lhe que compusesse uma nova marcha para as tropas que se dirigiam à batalha. Perante o entusiasmo geral, Rouget aceitou.

A madrugada do dia 26 de abril foi febril em Estraburgo. Febril para o povo e para os combatentes que se preparavam para a luta, mas particularmente para Rouget, que, em estado de grande empolgação, sem repousar, sentia ecoar em si as vozes animadas do povo a clamar pela liberdade, a dos camponeses que tremiam ao pensar que suas terras poderiam ser invadidas pelo inimigo, das mães que temiam por seus filhos.

Rouge de Lisle escreveu, então, as duas primeiras linhas que não passavam de ecos do que seus ouvidos captaram:

“Allons,  enfants de la patrie,

Le jour de gloire est arrivé!”

Gostou do princípio. Pegou o violino e musicou-a. Encontrou inspirado um ritmo próprio para a marcha. Escreveu mais versos que, à medida que brotavam, aumentavam a excitação de seu sentir.

Claude Joseph Rouget de Lisle: compositor de A Marselhesa | Foto: Reprodução

No de dizer de Stefan Zweig, “(o capitão) Cada vez melhor adaptava a melodia ao compasso martelante, jubiloso, o palpitar do coração de um povo que desperta, pois nessa noite única, fora concedido ao Capitão Rouget ingressar na confraria da imortalidade”.

Antes do amanhecer, ao encerrar a quinta estrofe, completara o canto que duraria para sempre.

Rouget não pegou no sono, pois sinos da Catedral chamavam, ao raiar o dia, à concentração cívica. Ao encontrar na multidão o capitão, o prefeito cobrou-lhe a composição da marcha e tomando-o pelo braço, levou-o à casa para aquele que seria o primeiro ensaio. O próprio Dietrich, com sua voz de tenor puxou pelo solo.

Logo mais à noite, a “Marcha de Guerra do Exército do Reno”, dedicada ao general-comandante Luckner, teve um público maior, que a aprovou delirante. A esposa do prefeito que havia tirado cópias das partituras emocionou-se ao escrever a seu irmão dizendo-lhe que se tratava de um “Gluck melhorado”.

No entanto, a “Marselhesa” não possuía um espírito que a identificasse com uma música de câmera, para o canto de um solista. Hino libertário do povo, sua identidade com uma reunião de burgueses era pequena, pois seus genes eram impregnados daqueles que somente carregam os companheiros em luta.

Sua musicalidade era destinada a ser entoada por milhares de gargantas, num grito de vida ou de morte, pois o seu DNA tinha cromossomas com características próprias das massas, das multidões.

Sua verdadeira orquestração deveria ser dada pelo retinir das armas, pela fanfarra dos clarins anunciando a luta, pelo ressoar da marcha dos regimentos libertários.

Mas, naquele momento, nem mesmo o seu autor, Rouget de Lisle, suspeitou disso. Escreveu cópias, imprimiu-as e as enviou a diversos corpos do Exército Francês.

Meses se passaram e a maioria das partituras ou se perdeu ou foi esquecida em algumas gavetas.

Segundo Ato

Muito longe da Alsácia, num porto da costa mediterrânea, o Clube dos Amigos da Constituição oferecia, no dia 25 de junho, um banquete aos mais de quinhentos cidadãos voluntários, que marchariam para Paris, em defesa da liberdade e da Pátria.

Um desses jovens era Mireur, um estudante de medicina. De repente, ele subiu à mesa onde os copos e garrafas balançaram e, com o punho direito erguido, entoou uma canção que jamais ninguém ouvira. Seu primeiro verso era: “Allons, enfants de la Patrie”.

Foi como que um raio que vindo dos deuses eletrizasse a todos ao mesmo tempo. Os sentimentos de uns exaltam os dos outros, os voluntários que partiam para vencer ou morrer encontraram naquela marcha os motivos que seus corações entrelaçados queriam expressar. Mireur teve que cantar uma segunda e, já sem voz, uma terceira vez. Ao final, todos cantavam com o punho erguido: “Aux armes citoyens! Formez vos bataillons!”

No dia seguinte a marcha era entoada por mil, depois dez mil, depois por dezenas de milhares de bocas. Em todo o trajeto que os marselheses percorreram, a canção ganhava o coro dos camponeses e, quando em 30 de junho, o batalhão chegou a Paris a “Marcha do Reno” ganhou o seu nome definitivo: “A Marselhesa”, a música trazida pelos bravos de Marseille.

Em menos de dois meses o seu curso como o hino da França libertária tornou-se irresistível: cantavam-na nas ruas, nos teatros, nos clubes e até nas igrejas. O governo deu ordem para que fossem impressos cem mil exemplares e distribuídos em todos os quartéis do Exército, e ao avanço das tropas francesas tremiam os inimigos pelos sons de vozes até mesmo mais altas e agressivas que o rugido dos canhões.

Um hino que lançava os franceses ao combate apavorava os monarquistas e varria da França os invasores.

No entanto, em nenhuma das cópias das letras era citado o nome de seu inventor e único compositor, o capitão Rouget. Vivia ele isolado numa guarnição fronteiriça, um desconhecido de todo o povo que idolatrava sua canção de luta e de libertação.

E a fama da música revolucionária não se estenderia ao seu criador, porque, pessoalmente, Rouget não era um revolucionário, tão somente um patriota e libertário, que odiava todo tipo de despotismo. E ele, que mais do que ninguém incentivara as massas à revolução.

Quando a Convenção em 1793, com seus novos déspotas, mandou à guilhotina seu amigo, o prefeito Dietrich, o padrinho da Marselhesa, e o general Luckner, ao qual ela fora pela primeira vez dedicada, Rouget expressou seu desgosto publicamente e à Comissão de Salvação Pública. Isto bastou para que fosse detido como contrarrevolucionário e acusado de traição.

Somente lhe salvou o pescoço os acontecimentos do Nove de Termidor, em 1794, com a queda de Robespierre e de Saint-Just.

Terceiro ato

Libertado, Rouget viu-se privado da patente do exército, do uniforme e da pensão. Nem mesmo suas composições musicais eram aceitas para ao menos serem analisadas. É bem verdade que Carnot e, depois, Napoleão lhe acenaram com alguma ajuda. Mas aquele homem tão sofrido, mas de forte opinião, nada aceitaria das autoridades que um dia o haviam espezinhado. Ele escrevia atacando os representantes do poder, principalmente Bonaparte. Detestava os déspotas.

Sem amigos, vigiado pela polícia, perseguido pelos credores, até mesmo cumpriu prisão por não pagamento de promissórias.

Recolheu-se, por fim, a um canto de província e de lá primeiro ouviu “A Marselhesa” ressoar à frente dos exércitos vitoriosos na Europa; depois soube que Napoleão, em 1805, coroado Imperador, havia banido a marcha “por ser demais revolucionária”.

E que com a sua queda, em 1815, os Bourbons da Restauração a haviam absolutamente proibido, sob pena de trabalhos forçados para quem a entoasse.

Já ancião, surpreendeu-se quando, na Revolução de 1830, sua música e letra ressurgiram nas barricadas de Paris e o monarca burguês-constitucionalista Luiz Felipe lhe concedeu pequena pensão vitalícia. Provavelmente não soube que em Paris, o grande maestro de seu tempo, Berlioz, orquestrava, com toda a sua genialidade, “A Marselhesa” a mil vozes.

Se por um lado, ao falecer em 1836, aos 76 anos de idade, ninguém mais se lembrava de seu nome, também foi poupado a Rouget de Lisle saber que “A Marselhesa” voltaria a ser proibida por Napoleão III, em 1852, tendo somente retornado como hino libertário com as barricadas da Comuna de Paris, em 1871.

Quarto Ato

Muitos anos transcorreriam até que na Primeira Grande Guerra (1914-1918), quando “A Marselhesa”, de longa data transformada em Hino Nacional, foi vitoriosamente cantada em todas as frentes de batalha.

Ao mesmo tempo, o governo francês decretou que os restos mortais do capitão Rouget fossem exumados e transferidos para Los Invalides. Por ironia da história ou arte dos homens, seus restos descansam lado a lado daqueles que um dia pertenceram a Napoleão Bonaparte, a quem tanto desprezara em vida.

Cena final

Após o anúncio da difícil vitória da esquerda francesa sobre o neofascismo, neste histórico julho de 2024, uma enorme multidão de mais de trezentas mil pessoas entoou, comemorando pelas ruas o canto libertário da revolta: “Allons, enfants de la Patrie”.

Ouça a música A Marsalhesa