Congresso de Intelectuais: Memórias sobre Neruda, Confaloni e os bastidores

24 fevereiro 2019 às 00h00

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Leia os depoimentos Amaury Menezes, Gilberto Mendonça Teles, Lena Castello Branco e Luiz Augusto Paranhos Sampaio e suas reminiscências sobre aqueles dias que marcaram Goiânia

Um evento com tamanha envergadura e com a presença de nomes tão prestigiados ficaria, não sem muitos motivos, registrado na memória daqueles que participaram, direta ou indiretamente.
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Amaury Menezes lembra que tudo no evento nas dependências do Teatro Goiânia era “muito concorrido” e era o principal assunto naqueles dias, na recém-criada capital. O artista pontua que a veia cultural é um traço marcante nas origens de nossa cidade. “Tudo era muito concorrido, a capital inteira se movimentou em torno deste congresso. Goiânia tem esta característica interessante, esse lado voltado para a cultura, muito graças a Pedro Ludovico, que era uma pessoa muito culta. A inauguração de Goiânia, mesmo, foi intitulada batismo cultural.”

Além dos artistas de fora, a exposição abriu espaço para divulgar talentos e a arte local, o que fez com que o evento tornasse vitrine, por exemplo, para a arte dos índios Karajá, que ao contrário de outras tribos brasileiras, que volta sua arte para utensílios de cozinha, caracteriza-se pela arte figurativa.
Também deu visibilidade a um dos maiores artistas goianos, que até então era inteiramente desconhecido em todo o país: nada menos que Veiga Valle. “Foi assim que o Brasil os conheceu. Por isso, acho que esta exposição, bem como o Congresso Brasileiro de Intelectuais, foi o evento mais importante culturalmente na História de Goiás. Até hoje, não teve nada igual”, avalia.
Nas palavras do próprio Bernardo Élis, o saudoso idealizador, registradas no livro “Da Caverna ao Museu: Dicionário das Artes Plásticas em Goiás”, de Amaury Menezes (Fundação Cultural Pedro Ludovico, 1998), o I Congresso Nacional de Intelectuais foi uma espécie de “Semana de Arte Moderna (1922), mas de feição mais autenticamente nacional irmanando a intelectualidade, sem discriminações tão profundas, como as existentes, ensejando oportunidades que o ‘comadrismo’ dos grandes centros ensejam (….) Uniu intelectuais pelos laços de conhecimento pessoal, da camaradagem com figuras exponenciais do nosso mundo artístico.”
Além de todo esse legado, ficam todas as lembranças. A maioria, agradáveis; outras… nem tanto. “Outro dia alguém comentou que Neruda era um pedante. No congresso, tinha muita gente interessada em falar com ele, entrevistá-lo, mas ele se esquivava. Eu me recordo que eu procurei me aproximar dele, mas eu era penetra (risos). Senti que ele me repeliu em função de não fazer parte do congresso. Mas, realmente… ele era um chato!”, termina, novamente aos risos.
Gilberto Mendonça Teles foi o primeiro a escrever sobre o congresso, em seu livro A Poesia em Goiás, com primeira edição de 1964 e publicado pela Universidade Federal de Goiás, em 1983. “Eu era aluno do Liceu, mas tive a curiosidade de assistir a alguns debates. Pouco intelectual goiano se interessou pelo Congresso. Faltou interesse aos novos escritores, que poderiam ter entrevistado os participantes do Congresso ainda vivos”, lamenta.
Gilberto recorda que o povo goianiense ouviu e aplaudiu com entusiasmo os consagrados escritores nacionais que vieram representando cada estado. No Boletim n. 1, de dezembro de 1953, que preparava a realização desse Congresso, se lê que “O I Congresso Nacional de Intelectuais, que se reunirá em Goiânia, será um dos mais importantes acontecimentos de nossa vida cultural”. Sob a presidência do Dr. Xavier Júnior, assessorado por mais de 50 intelectuais goianos, o Congresso teve como temário a defesa da cultura brasileira e estímulo ao seu desenvolvimento, preservando-se as suas características nacionais; o intercâmbio cultural com todos os povos e problemas éticos e profissionais dos intelectuais. Dentro deste escopo, foram debatidos inúmeros problemas culturais e políticos.

Derrubada a Ditadura Vargas e finda a Guerra Mundial, escritores brasileiros começaram a agitar-se pelo País em vários estados, e em Goiás, esse movimento trouxe como consequência imediata a criação de uma secção da ABDE, em 1945. Nesse mesmo ano, realizou-se em São Paulo o “I Congresso Brasileiro de Escritores”, promovido pela ABDE de lá. Marcou-se outro para dois anos depois, que se realizou em Belo Horizonte, em 1947. Em 1949, realizou-se o III, desta vez na Bahia.
“Por ocasião do IV Congresso Brasileiro de Escritores, realizado em Porto Alegre, um dos nossos representantes, Domingos Félix de Sousa, mesmo contra seus companheiros (Bernardo Élis, D. Amália Hermano etc.), se bateu para que o V congresso se realizasse em Goiânia, no que foi atendido. Mas, por essa época, com a infiltração de ideias comunistas na Associação Brasileira de Escritores, houve uma cisão em São Paulo, imitada depois nos outros estados, criando-se mesmo novas instituições. Então, para que se unissem, não somente os escritores, mas todos os intelectuais brasileiros, em vez de se realizar em Goiânia o V Congresso Brasileiros de Escritores, programou-se o I Congresso Nacional de Intelectuais, que conseguiu atingir os seus objetivos”, explica Gilberto.
O escritor goiano pontua, no entanto, que apesar do pleno êxito do Congresso, cujas ressonâncias ficaram na alma dos intelectuais goianos, abrindo-lhes novos horizontes e dando-lhes uma visão mais pura dos problemas nacionais, a iniciativa, aos poucos, foi deixando de ter reverberação no meio intelectual local.
“Passados, todavia, os primeiros momentos de entusiasmo, e na falta de valores novos, porque, com poucas exceções, os escritores goianos que participaram do Congresso eram os mesmos que se apresentaram na revista Oeste; passada, portanto, a motivação e à medida que foram evanescendo as lembranças dos assuntos debatidos, a maioria dos escritores se vão também paralisando, a ponto de dois anos depois, uma apatia geral parecer dominar os nossos meios literários”, lembra. Para reacender a chama, eis que surge a ideia da “I Semana de Arte em Goiás”, realizada em 1956.
Mesmo “boyzinho”, Luiz Augusto Sampaio também acompanhou todo rebuliço gerado pelo evento. O congresso também foi tema abordado por Luiz em reportagem publicada na revista do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (Nº 25/2014). “Naquela época, não tinha muita idade para participar, era muito jovem, tinha 16 anos. A folclorista, membro da Academia de Letras e diretora do Zoroastro Artiaga, Regina Lacerda, era muita amiga da minha mãe. Elas chegaram a trabalhar juntas no museu. Regina convidou a mim para auxiliá-la no congresso, como se fosse um office boy no evento. Trabalhei levando escritores para comprar jornais, este tipo de coisa”, recorda-se.

Conto premiado
Uma das mais destacadas intelectuais que atuam em Goiás, a historiadora e doutora pela USP, Lena Castello Branco Ferreira de Freitas, não pode estar fisicamente presente no Congresso. No entanto, não deixou de marcar uma significativa presença. Antes de seguir em viagem para o Nordeste, Lena enviou o texto “O Muro” ao Concurso de Contos promovido como parte do conclave. “Meu conto foi classificado em 2º lugar por uma comissão presidida pelo Bernardo Élis. O 1º lugar foi atribuído – se não me engano – ao Jean Pierre Conrad”, recorda-se. O conto seria publicado no livro assinado por Lea, “Novilha de Raça e outros contos”, editado em Goiânia pela Kelps (2009).
À época, com pouco mais de 20 anos, Lena concluíra a licenciatura em Geografia e História na Faculdade de Filosofia e escrevia crônicas para o jornal Folha de Goyaz. Foi na redação desse periódico que teve notícia da próxima realização do I Congresso de Nacional e Internacional de Intelectuais em Goiânia, marcado para fevereiro de 1954. “Havia intensa efervescência no meio literário e jornalístico, divulgando-se o evento e conclamando-se a população a prestigiá-lo”, recorda-se.

Empolgada, Lena inteirou-se da programação: sessões magnas, conferências, banquetes oficiais; em paralelo, almoços e encontros informais em casa dos anfitriões goianos, que recepcionariam os visitantes ilustres. Na relação dos possíveis convidados que viriam ao Congresso, sobressaía o nome de Neruda, além de outros escritores e intelectuais latino-americanos, ao lado de brasileiros, cuja estrela maior seriam Jorge Amado e a esposa, Zélia Gattai.
“Confesso que amava (ainda amo) a poesia de Pablo Neruda, bem como os romances e contos de Jorge Amado. Entretanto, não me foi possível estar em Goiânia por ocasião do Congresso. Eu trabalhava em uma repartição pública e marcara minhas férias exatamente para os dias em que se realizaria o conclave; era difícil transferi-las, assim como as passagens aéreas, já compradas com meu minguado salário de funcionária ‘barnabé’, como se dizia. Além do que – eu imaginava – nem chegaria perto daqueles luminares, nem me acercaria das luzes e das glórias que os exaltariam”, relata.
Havia, contudo, um item da programação que a atraía de modo especial: a realização de um concurso de contos. Após passar algumas noites ‘batucando’ a pequena Olivetti, conclui o despretensioso “O Muro”, inspirado no cenário e personagens vilaboenses. Escrito em estilo tradicional, a narrativa segue os moldes dos autores do século XIX que eram meus prediletos: Tchecov, Eça de Queiroz, Maupassant, Machado de Assis. Não que eu sonhasse igualá-los, mas, de longe, seguia seus passos como o faz a sombra do corpo que a luz projeta.
Lena entregou os originais, de acordo com o regulamento: em três cópias, com um pseudônimo que escondia a autoria. Em seguida, viajou para o Nordeste, onde ficou isolada por duas semanas. “Estávamos em 1954 e as comunicações eram precárias: sem telefone, distante do mundo, desfrutando o sabor de mangas e jacas no aconchego familiar da fazenda de minha infância”, explica.
Ao chegar, teve enfim a notícia. “Retornei à assim chamada civilização – de camionete, depois de ônibus até a capital piauiense; em seguida de avião para Goiânia. Uma grata surpresa me aguardava: ‘O Muro’ fora classificado em 2º lugar no concurso de contos do congresso. Fiquei radiante: ali estaria o reconhecimento de meus dons de escritora… E como não ficá-lo, aos 23 anos de idade, com pretensões de continuar escrevendo pela vida afora?”