Condenação à morte e as “Recordações da casa dos mortos”: juventude de Dostoiévski
06 agosto 2023 às 00h01
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Carlos Russo Jr.
Uma aldrava soa insistentemente na madrugada primaveril de São Petersburgo; o ano é o de 1849.
O jovem Fiódor Dostoiévski (1821-1881 — viveu apenas 59 anos), em trajes de dormir, abre a porta de sua habitação espantado, tem medo. Espera-o uma mensagem de violência, de morte. Oficiais de polícia e cossacos entram, vasculham todo o simples quarto, levam consigo os papéis que encontram e, prendem e acorrentam o escritor, que recém experimentara o sucesso com o seu primeiro grande romance “Gente Humilde” (há uma edição da Editora com o título de “Gente Pobre”, com tradução direta do russo por Fátima Bianchi).
Durante os próximos oito meses ele vegetará preso em uma solitária na Fortaleza de Pedro e Paulo, sem processo formal ou noção do destino que o espera.
Seu crime? Ele não o sabia ao certo, somente presumia. É verdade que participara de um grupo intelectual denominado “Círculo Petrashevski”. O grupo de estudos era dedicado à discussão sobre as condições de vida na Rússia, centrada em obras da biblioteca pertencente ao próprio Petrashevski, que continha livros proibidos pela censura. Também é certo que Dostoiévski participava há três meses de uma organização radical secreta, liderada por Nikolai Spechniev. Mas, por sorte, isso jamais chegaria a ser descoberto pelas autoridades da época, somente vindo a público após a Revolução Socialista, 70 anos depois.
Afinal, a principal acusação assacada contra Dostoiévski foi haver lido em público uma carta aberta do crítico literário e escritor social- revolucionário Bielínski (1811-1848), então falecido, ao escritor Nikolai Gógol (1809-1852), na qual o autor de “Almas Mortas” era criticado por suas visões políticas e sociais conservadoras.
O espectro das revoluções de 1848 assustava a Europa. Nicolau I (o mesmo Czar que seria imortalizado por Tolstói no conto “Nicolas Palkine” como torturador) mostrou-se temeroso de que qualquer organização clandestina poderia colocar em risco a autocracia, a exemplo do que já ocorrera na França e na Alemanha.
Nada melhor que inventar uma conjuração contra o Império, denominando-a de “Conspiração Petrachevski”.
Em 22 de dezembro, sem nem ao menos a pantomima de um julgamento, o Czar condena os acusados à pena de morte.
Ao amanhecer do dia seguinte, Dostoiévski e seus nove companheiros são retirados da cela e, no pátio de execuções, já amarrados a postes, têm os olhos vendados. Ouvem a leitura da sentença de condenação à morte e, em seguida, o rufar os tambores.
O desespero do jovem Dostoiévski, aos 28 anos de idade, e o desejo pela vida, congelam-se por um instante naquele cérebro colossal.
O oficial que comanda o fuzilamento ordena o posicionamento, os recrutas apontam suas armas, mas a ordem de fogo não é dada. A “maldade” do Czar montara a ópera bufa de uma farsa.
Os presos são desvendados e desamarrados. E lhes anunciada “a graça”, o perdão imperial; Nicolau I transformara a pena de morte em prisão com trabalhos forçados na Sibéria.
A Dostoiévski coube quatro longos anos de reclusão, que seriam seguidos por mais quatro de prestação de serviços ao exército, ainda na Sibéria.
A casa dos mortos vivos
A Bíblia é o único livro que lhe será permitido levar consigo no longo martírio que vivenciará na casa prisional siberiana, onde será uma sombra entre as sombras, sem nome, apenas um número, esquecido dentre os “mortos sem sepultura”.
Quando, chegando à Sibéria, os soldados tiraram-lhe das pernas feridas as correntes que as prendiam, o condenado perdera muito de sua saúde. Mas o que lhe permaneceria intocável e indestrutível era a alegria de viver, o desejo de escrever e de tudo anotar em sua prodigiosa memória para, um dia, servir-lhe, talvez catarticamente, de material de criação.
Em carta ao seu irmão, descrita em “O Idiota”, Dostoiévski comenta sobre o calvário vivido:
“Não me abati e nem senti desânimo. A vida é vida em qualquer lugar, a vida está em nós mesmos e não fora de nós. Ao meu lado há pessoas, e permanecer sempre, quaisquer que sejam os infortúnios, sem perder a coragem e cair no desânimo- eis em que consiste a vida, em que consiste seu objetivo.”
Na “Casa dos Mortos” ele terá como companheiros de jornada criminosos, ladrões, pobres homens do povo que um dia haviam se revoltado contra a fome, alguns aristocratas degradados e uns poucos presos políticos, aliás como ele próprio.
Logo descobrirá que na prisão existiam as mesmas diferenças sociais que vivenciara do lado de fora. Ele relatará como os camponeses zombavam dos intelectuais, por sua falta de destreza física nos trabalhos forçados, pois ao fim e ao cabo, embora todos comungassem do mesmo pão amargo, carregando pedras, telhas, limpando neve, cortando madeira, cortando rochas, aos “nobres” cabiam os trabalhos não tão rigorosos.
“Estou no presídio e esta vai ser minha vida por anos, o lugar em que irei sentir tão inverossímeis, tão mórbidas impressões. E quem sabe, ao deixá-la sinta saudades – com uma mescla dessa maliciosa impressão que as vezes degenera na necessidade de remexermos propositalmente na ferida, pelo desejo de distrairmo-nos com nosso próprio sofrimento, reconhecendo que no exagero de toda infelicidade há também prazer.”
Suas “Recordações da Casa dos Mortos” (livro saiu, pela Editora 34, com outro título: “Escritos da Casa Morta”, 408 páginas, tradução do russo por Paulo Bezerra) serão uma coletânea interminável de suplícios físicos e psíquicos que o poder, através de seus esbirros, aplica aos pobres condenados. Afinal, “os presídios e o sistema de trabalhos forçados não melhoram os delinquentes, aos quais apenas castigam”.
Presídios nada mais são que depósitos de escravos a serem destruídos física ou espiritualmente; uma forma clara de sinalizar aos marginalizados do processo econômico e político o que os aguarda se transgredirem certas normas.
A mesma forma de exercer o poder que nos transporta ao mal que varreria o século XX chegando aos dias de hoje: a tortura generalizada contra os pobres marginalizados, a morte banal, os campos de concentração e extermínio, presídios e casas de detenção onde “o mal radical”, que no dizer de Immmanuel Kant, destrói e aniquila não somente suas vítimas diretas, mas também os meios com que poderiam tentar reagir a ele.
“Não é em vão que em toda a Rússia, o povo chama desgraça ao crime e desgraçado ao criminoso”, nos relata o sensível narrador.
Anos após o exílio forçado na Sibéria, Dostoiévski retornaria a Petersburgo e editaria seu romance semiautobiográfico “Recordações da Casa dos Mortos”. Como os ex-forçados eram proibidos de escrever memórias e relatos, Dostoiévski disfarçou a obra como ficção, dizendo-a ser o diário de um homem preso por assassinar a esposa em crise de ciúmes.
O romance causou tal impacto na Rússia, que até mesmo o sádico czar Nicolau I mandou que se divulgasse que ele havia chorado ao lê-lo.
O caminho de Dostoiévski como escritor de prestígio acabava de abrir-se e o genocídio, praticado na Sibéria czarista, ganhava pela primeira vez, seu lugar na literatura.
Carlos Russo é escritor e crítico literário.
Carlos Russo Jr.