No Brasil, o horror sempre foi um gênero literário estranho, em todos os sentidos. Quando o horror viveu seu auge, com o gótico europeu do século 19, o Brasil passava pelo processo de Independência e a intelectualidade artística buscava exaltar o projeto estético que contribuía com a construção da identidade nacional. No país, a prosa sobre o sentimento do medo perdeu lugar para seu antônimo, a coragem. 

Conforme argumentou Júlio França, professor de teoria da literatura da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), em entrevista à revista “Pesquisa Fapesp”, isso não significa que o país não tenha produzido narrativas sobre o medo (mesmo porque é natural que escritores brasileiros se orientassem pelas tendências europeias). Álvares de Azevedo foi o principal exemplo. Ainda assim, a recepção de sua obra foi e continua sendo de exceção à regra do romantismo ufanista que dominava a época.

O horror brasileiro permaneceu estranho porque o país nunca desenvolveu uma linguagem própria no gênero. Na primeira metade do século 20, os Estados Unidos passaram pela era de ouro do terror enquanto literatura popular e de gênero. Foi o período das revistas pulp, como “Weird Tales” (1923-1954) e “Horror Stories” (1933-1941). Historicamente, a literatura de gênero foi desdenhada em detrimento da alta ficção literária; entretanto, o período foi fundamental para a criação de tropos posteriormente incorporados pelo cinema e pensamento americanos (zumbis, deuses alienígenas de Lovecraft e monstros da Universal Studios). 

Mais importante ainda: a literatura de gênero não permaneceu na periferia intelectual para sempre. Em todas as artes, uma das características da pós-modernidade é a derrubada das fronteiras entre o popular e o erudito. Quando o movimento pós-moderno chegou ao Brasil, essa valorização da literatura popular pôde ser facilmente percebida nos romances e contos de detetive de Rubem Fonseca, por exemplo. As histórias policiais também fizeram parte da baixa literatura (mais populares no Brasil do que o horror), e foram alçadas a novos patamares com “A Grande Arte” (1982), “Romance Negro” (1992), entre outros. 

Assim, hoje, parte dos escritores que buscam criar histórias de horror brasileiras parece dividida entre dois caminhos: a subversão do nosso folclore ou a releitura do horror estrangeiro. Isso não significa que livros nacionais de horror sejam de menor qualidade; mas significa que estes escritores se defrontam com uma questão extra sobre originalidade. De um lado, há velhos sacis, mulas sem cabeça e curupiras. De outro lado, há novos vampiros, fantasmas e mortos-vivos. 

Porém, há sempre o caminho mais difícil, incerto e aventuroso da criação de ficção que seja universal. O horror, aliás, é o sentimento mais universal da humanidade, a primeira e mais forte emoção, conforme a máxima de H. P. Lovecraft. Este caminho, por não estar mapeado, é menos percebido pelos escritores; não conta com as fórmulas da literatura de gênero, ainda que tropos e monstros conhecidos façam aparições esporádicas. 

Renascença da ficção do horror

É esta espécie de horror que tem movido uma renascença da ficção de horror, principalmente em língua inglesa. O gênero foi dominado e exportado para o mundo na segunda metade do século 20 por meio dos best-sellers Stephen King, Anne Rice, Clive Barker e outros. Mais recentemente, entretanto, tem ganhado força a valorização das obras de horror que sejam alegóricas, pesadamente estilizadas, com foco na forma narrativa e nos personagens complexos; é o tal pós-modernismo que mistura popular e culto. 

Vale a pena mencionar algumas obras e escritores deste movimento. Thomas Ligotti merece atenção especial por misturar a temática do horror cósmico de Lovecraft com a filosofia existencial de Peter Wessel Zapffe e de Kierkegaard por meio de uma ultra-trabalhada prosa gótica. Barron Laird, John Langan, Caitlín R. Kiernan também merecem menção. No cinema, Robert Eggers com os filmes “A Bruxa” e “O farol” vai pelo mesmo caminho; Jordan Peele de “Não Olhe”, “Corra” e “Nós” faz o mesmo, acrescentando a temática social.

O público brasileiro parece compartilhar do interesse por obras de horror que sejam mais do que entretenimento de sustos baratos. O sucesso dos filmes citados e surgimento de editoras como a Darkside, especializada no horror, mostram que há demanda por escritores que encaram o gênero seriamente. A oferta é incipiente, entretanto. Nenhum dos autores citados no último parágrafo foi traduzido para o português. 

O Dia Escuro: a hora e a vez dos brasileiros

“O Dia Escuro” (Companhia das Letras, 228 páginas, organização de Fabiane Secches e Socorro Acioli) é uma coletânea de contos escritos por mulheres que reúne bons exemplos de narrativas neste espírito da renascença do horror. Seu lançamento, em 31 de outubro de 2024, por uma editora como a Companhia das Letras, é um sinal promissor. 

Reunindo 20 autoras, “O Dia Escuro” aponta com precisão aquilo que as mulheres temem. Os objetos dos contos são principalmente a violência, a inadequação social em função do próprio corpo, a vulnerabilidade e desamparo que se experimenta na infância, a intromissão do sobrenatural nas relações familiares. Alguns contos se destacam pela qualidade que ultrapassa a literatura de gênero, em especial “A troca”, de Fabiane Guimarães, e “Coma antes que esfrie”, de Flavia Stefani.

Fabiane Guimaraes, autora de “A troca” | Foto: Foto: Alexia Fidalgo / Companhia das Letras

A troca” é um legítimo conto de terror. Aflitiva, a narração em primeira pessoa em tom confessional é honesta e direta, mas cruel e dúbia. O conto tem uma premissa inesperada, mas universalmente desconcertante: a estranha sensação de que pessoas próximas podem ter sido substituídas por impostoras. Quando psicológico, o sentimento possui o nome de Síndrome de Capgras; o conto de Fabiane Guimarães, entretanto, joga com a possibilidade de que a protagonista não sofra de um delírio, e que sua suspeita seja legítima. 

“Sei de mulheres que vivem aterrorizadas com a possibilidade de que seus filhos sejam trocados na maternidade. Imagine parir um bebê sem rosto fixo, com marcas de sangue seco, e levar para casa outro, um estranho. Imagine dar banho no bebê extraviado, entregar-lhe o peito, amá-lo a ponto de reconhecê-lo como seu. Acho que o terror é inspirado pelo perigo da ligação. Elas temem descobrir a troca e então ser obrigadas a desfazer o amor. De qualquer forma, comigo aconteceu a coisa oposta. Aos três anos de idade, trocaram a minha mãe.”

Coma antes que esfrie” se destaca pela forma aprimorada, com prosa precisa e suprimida de qualquer palavra desnecessária. Menos comprometido com o desenrolar da trama, a atenção da narradora está em potencializar os efeitos de angústia, nojo, pânico e pesar provocados no leitor. 

Com uma história simples — a narração de um jantar dividido pela protagonista, seu marido e o chefe do marido —, Flavia Stefani pode manipular a cronologia dos acontecimentos e a descrição do cenário de forma a gerar estranhamento sem desorientar o leitor. A proximidade entre os personagens do marido e seu chefe milionário, com a exclusão da protagonista, assume a metáfora da irmandade exclusiva entre os homens. 

Flavia Stefani, autora de “Coma antes que esfrie” | Foto: Guilherme Alves / Jornal Opção

O que rouba a cena em “Coma antes que esfrie”, entretanto, é o poder da narrativa. Alguns trechos são exemplos primorosos de estidade. No livro “Como Funciona a Ficção”, James Wood define estidade como a tangibilidade, o detalhe “que imputa realismo sobre o mundo ralo da descrição literária”.

A protagonista de “Coma antes que esfrie” detesta pimentões, e descreve assim o momento em que é forçada a comê-los: “Seu sabor detestável tinha pernas, viajando pelo prato”. As pernas do pimentão tornam tudo muito real e próximo. Momentos depois, quando a codorna do prato principal se move na mesa, o horror sentido pela protagonista é tangível, corporal como em um filme de Cronenberg. 

Em outro exemplo, a narradora explica assim o sentimento de decepção da protagonista com seu marido, que muda de personalidade subitamente para agradar seu chefe: “Ela havia feito um lar para si mesma nesse sentimento”. Não se trata de um sentimento qualquer que foi ferido, mas de um sentimento especialmente concreto, a sensação de lar.

Laís Romero, autora de “Cão dos Infernos” | Foto: Reprodução

Outros exemplos de estidade em “Coma antes que esfrie” não precisam de contexto: “A manhã se estirava como um cobertor macio sobre o jardim”. Segundo James Wood, este é “O mostrar de uma coisa que possa estar simultaneamente deslocada da narrativa e circunstancialmente aderida a ela, permitindo que esse espaço imaginário se pareça mais com o mundo ‘real’, repleto de insignificâncias”.

Outras escritoras de “O Dia Escuro” assimilaram elementos do gênero para criar narrativas sérias, como Laís Romero, autora de “Cão dos Infernos”. Por meio da apropriação de fórmulas do horror, Laís Romero subverte expectativas para criar um relato que, de tão doloroso, seria difícil de suportar em uma narrativa direta. 

Há outros bons contos em “O Dia Escuro”, mas que pertencem a outros gêneros. “Coração da aurora”, de Ana Rüsche, é um excelente conto de ficção científica. “A água me contou um segredo”, de Cidinha da Silva, é aquele que mais se distancia da proposta dos demais 19 contos — trata-se de comentário social e político. A mera presença de acontecimentos horríveis na história não basta para configurar o gênero do horror. Há ainda aqueles contos que seguem o caminho folclórico das bestas mitológicas ou o caminho popular dos cientistas malucos, pré-movimento de “renascença do horror” que tenta restaurar o status literário respeitável da era da literatura gótica.