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Apesar de considerar que a força do que é dito jamais deve ser negligenciada, penso que poucas vezes uma palavra alcançou tão bem a sua significação: tenta, tenta

Heloisa Helena de Campos Borges

Especial para o Jornal Opção

Conheci o professor Gilberto Mendonça Teles em 1979. Ele veio, especialmente, do Rio de Janeiro a Goiânia, ministrar aulas sobre História Literária, no curso que preparava professores para a obtenção do título de mestre em Linguística e Literatura pela Universidade Federal de Goiás (UFG).

Após uma das aulas, Gilberto perguntou se eu poderia deixá-lo na Praça Cívica e se não me causaria atrapalho, pois estava sem carro. Concordei, dizendo-lhe que de toda maneira eu teria de passar pela Praça Cívica para buscar meus filhos na escola e que lhe daria “carona” com prazer.

Como o Campus Universitário é distante do Centro de Goiânia, tivemos um bom tempo para conversar. O professor perguntou-me várias coisas, incluindo o meu interesse em cursar o mestrado. Respondi-lhe que, além da necessidade dessa titulação para a minha carreira de docente, um outro motivo me impulsionava, que era o, de fato, aprender a ler.

Penso que a minha resposta foi inesperada, porque Gilberto riu com ar de surpresa e continuou com suas perguntas. De repente, quis saber se eu escrevia. Respondi que não. Então, ele disse, quem se torna capaz de ler, também tem a chance de escrever. E acrescentou: experimenta escrever. Por que não tenta? E repetiu: tenta… tenta…

Após o término do primeiro módulo das suas aulas, que eram divididas em três, o professor Gilberto retornou ao Rio de Janeiro, e, de lá, para agradecer a “carona” que lhe dei, presenteou-me com um exemplar do seu livro “Saciologia Goiana”, na época, recentemente publicado.

Assim que o recebi, comecei minha leitura. Confesso que eu ainda não conhecia um único dos seus versos e me deliciei, sobretudo, com sua deferência pela origem goiana.

Para retribuir a delicadeza da atenção para comigo, enviei-lhe uma carta. E, revelo, para me exibir apresentando-lhe algo diferente, eu escrevi: Professor, pensei que o mar tivesse te levado, pensei que o mar tivesse te lavado… palavras iniciais que deram seguimento ao meu agradecimento.

Depois de algum tempo, porque não confessar uma pontinha da vaidade sentida por ter participado da construção, recebi o poema “Declinação”, por meio do qual o professor Gilberto respondeu às minhas impressões:

Declinação

O mar não me levou:

os meus cuidados

(o que era ruim /o que era bom demais)

ficaram por aí, pelos cerrados,

à sombra dos paus-terras de Goiás.

O mar não me lavou:

meu corpo todo

tem as marcas da terra — o sol, o chão,

os cheiros doces dos quintais, do lodo,

e a febre do meu T nesta sezão.

Eu sou quem sou. Não me mudei. Mudou-me

uma parte da vida, mas foi sem:

não me levou nem me lavou,

livrou-me

da danação de todo mal, amém.

(Se houver louvor aqui, se alguma luva,

qualquer pessoa a pode usar por mim:

a minha história é como um guarda-chuva

que a gente esquece, quando chega ao fim.)

O tempo passou. Após um período de quase sete anos depois da obtenção do título de mestre, tempo suficiente para que grandes mudanças aconteçam na vida de qualquer pessoa, eis que, abrupta e drasticamente, aos 39 anos, um problema neurológico me excluiu do corre-corre da vida, roubando-me equilíbrio e força para me locomover livremente.

Abalada com tamanha mudança, uma certa manhã, no meu quarto, sozinha e pensativa, sentada em uma cadeira, de onde somente era possível ver um pedaço do céu azul e ouvir o canto dos passarinhos, eu senti que, apesar do meu corpo fragilizado estar preso entre quatro paredes, minha alma continuava liberta e ainda se encantava com a abundante beleza que a Natureza generosa nos entrega diariamente.

Nesse instante de inquietação e também de súbita coragem, a voz do professor Gilberto soou bem clara perto de mim, perguntando: Você escreve? Por que não tenta? Tenta… tenta… e, daí para frente, deveras atraída, encontrei na palavra uma alavanca para a minha reestruturação interior. Em um dos primeiros poemas que escrevi, ousei este desabafo:

A dor do mundo

A dor do mundo

tirou o mar que me levava,

tirou o ar que me embriagava, eu chorei dia e noite,

eu chorei noite e dia:

os sobressaltos da minha alma

doíam mais que os sobressaltos

da minha vida.

A noite se fez escura,

os dias mais ainda…

eu sofria, eu sofria

e tudo recomeçava bruto

na emenda das horas que se seguiam.

A dor do mundo

tirou-me quase tudo:

a força, o viço,

só me deixou,

intrigantemente,

a coragem,

esta coragem desmedida

de apostar na vida.

No segundo verso da primeira estrofe, lá estava o verbo levar: A dor do mundo/ tirou o mar que me levava.

Quando tive oportunidade, mostrei o poema ao professor Gilberto e lhe disse: o verbo levar voltou para mim. Ao que ele respondeu: a lei do eterno retorno.

Apesar de considerar que a força do que é dito jamais deve ser negligenciada, penso que poucas vezes uma palavra alcançou tão bem a sua significação: tenta, tenta…

Então, professor Gilberto Mendonça Teles, obrigada, só posso lhe dizer sempre, obrigada. O seu incentivo encorajou-me a dar novo sentido à minha vida. Afinal, minha alma ouviu a sua voz.

Mais uma vez, obrigada! E muitas felicidades! E parabéns pelos seus 90 anos bem-vividos.                                       

Heloisa Helena de Campos Borges é poetisa, crítica literária, ensaísta e ex-presidente da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás (Aflag). É colaboradora do Jornal Opção.