Diogo Alves

A história do cinema é um eterno gênese que se confunde com sua própria busca por aceitação. Entendendo-se como arte qualquer expressão que, acima de tudo e essencialmente, possua existência e experiência estética, uma pintura, uma escultura, um poema e uma peça teatral não possuem qualquer obrigação social, moral ou intelectual a não ser meramente a de exercer uma jornada estética. Portanto, qual é a existência artística de uma inovação tecnológica fruto da revolução industrial cujo objeto final, o retrato fidedigno de um acontecimento, em nada se diferencia daquilo que enxergamos de olhos abertos?

Qual o valor estético de um trem, totalmente em foco, chegando a uma estação no final do século XIX, retratado como mera realidade? Curioso pensar, todavia, que atualmente, alguns dos maiores estetas cinematográficos se baseiam na mera representação do real como ele de fato é. O quão insignificantes são pequenas ficções científicas que em pouco se diferenciam dos teatros de marionetes, vaudevilles e bordeis destinados às classes baixas francesas no início dos anos 1900? Interessante pensar como, em contrapartida, o maior diretor estadunidense das últimas quatro décadas se apropria justamente da dimensão mais circense e primitiva da Sétima Arte. Qual a legitimidade de uma arte que, ao aprofundar-se minimamente além daquilo que nossos olhos testemunham ao encontrarem-se abertos, foi responsável pelo ressurgimento de inúmeras manifestações opressivas em celuloide, louvando valores abjetos como o racismo e o colonialismo?

Para além somente do valor de utilidade, incabível ao pensar-se em arte, algo que o cinema demorou a provar-se como, destaca-se também como a repetição levou à falta de atratividade de algo que capta, para além dos rostos e corpos tão distantes daqueles que observamos em nosso dia a dia, lugares que nunca veremos ou presenciamos em demasia. Jean-Claude Carrière, na introdução ao fantástico “A linguagem secreta do cinema”, nos conta sobre como os colonizadores franceses, no pós-Primeira Guerra Mundial, levavam o cinema à porção norte da África como uma forma de mostrar a mais nova invenção industrial europeia e como uma forma de ressaltar os valores coloniais e raciais desse povo cujo toque é tão destrutivo como o de Midas é reluzente.

Ressalta-se, entretanto, que devido aos valores islâmicos de boa parte dos habitantes do norte africano e, consequentemente, o fato de não poderem representar a face e a forma humana, criações divinas, os levavam a fechar os olhos por completo assim que a luz do projetor tocava a superfície branca da tela. Ainda que tardiamente, o cinema desenvolveu uma base linguística muito sólida, eternamente em movimento e que ajudou a consolidá-lo como expressão artística. Conceitualmente, uma das primeiras funções da linguagem que se aprende é que se não há receptor, todo o resto é em vão. Entretanto, cinema é mais do que mera linguagem. É arte.

E como arte, não há necessidade alguma além da existência estética. O quão bonita é uma paisagem vista através das pálpebras fechadas, com a pele atravessada pelos raios solares, composta pela luz invasora e pela imaginação fruto dos sons arredores? Em nossos sonhos, quantas vezes nos enxergamos presenciando as mais maravilhosas ou sombrias realidades somente para acordarmos e ou nos decepcionarmos ou nos vermos vivos novamente, por mais um longo dia? Não estariam aqueles povos que, ao recusarem-se a ir contra os mandamentos de Deus, mostrando-nos o verdadeiro caminho e a melhor forma para experienciarmos o cinema e a arte?

Escrevo essas palavras pois creio que a Sétima Arte se encontra em uma de suas piores crises estéticas e de linguagem do século XXI. Um filme perde toda a sua magia se, em um universo ficcional, a mais banal das leis da física é desrespeitada. Um personagem perde todo seu carisma se toma uma decisão que fuja um milímetro da longa e retilínea calçada da lógica. Um diretor torna-se um canalha quando um de seus filmes possui uma mensagem (ou não possui mensagem alguma) que desafie minimamente o mais comum dos sensos e o melhor dos costumes.

A profusão e a perpetuação de imagens ao nosso redor não só substituiu o mundo em que vivemos, mas tornou-nos insensíveis e, acima de tudo, insuportáveis. Muito porque nossos olhos estão tão abertos que não possuímos mais pálpebras, mas somente uma membrana tão cristalina como as imagens digitais geradas pelas câmeras cinematográficas que possuímos hoje em dia, e que lentamente estão esvaziando a estética cinematográfica e a maravilha da surpresa. Pedaços de pele esses que, assim como os personagens dos filmes moralistas e demasiadamente bonzinhos que assistimos, recusam a tocarem-se. Luís Buñuel, parceiro recorrente de Carrière, era um grande visionário, mas não creio que em seu “Cão Andaluz” ele imaginava que uma navalha poderia abrir um olho de uma forma tão irrecuperável como a que nos encontramos hoje.

Não creio que se trata de um mal maniqueísta, e muito menos de um problema que requer solução. Defendo somente que a falta de sensibilidade deva ser tratada com uma busca diferente. Com um fechar de olhos. Com um cinema cujas imagens sejam tão cristalinas como os raios de sol que invadem nossas pálpebras cerradas. Com um cinema cujos cenários sejam tão nítidos como as silhuetas sombrias e noturnas de magníficas montanhas recortadas por um céu nublado. Por um cinema com histórias e mensagens tão louváveis como um casal de bandidos juvenis que aprendem a se amar em uma rodovia em meio a assaltos. Por um cinema, como teorizado por Andrei Tarkovski, que se rememore da ausência de regras em sua própria lógica de funcionamento existencial. Por um cinema, como disse Stan Brakhage, um dos maiores cineastas experimentais de todos os tempos, onde pode-se “imaginar um mundo vivo, com objetos incompreensíveis e reluzente com uma infinita variedade de movimento e inumeráveis gradações de cor. Imagine um mundo antes do princípio ser verbo”.[1]

Mais do que somente antes do princípio ser verbo, por um cinema onde tudo é inconsequente e inesperado. Onde histórias e verossimilhanças são irrelevantes, pois o que valem são as emoções que escutamos e sentimos com nossos cristalinos olhos fechados e nossas almas abertas. Abel Gance já dizia que “o cinema é a música da luz”, então que não tenhamos medo de dançar diante da luz e bailar para a sombra. Arte não é vida real, e o cinema é arte. As vinte quatro fotogramas por segundo são alquimia, e acima de tudo, experiência. Irreal, real ou surreal, o que vale a pena, caro leitor, é estar aberto a experienciar as imagens em movimento e deixar-nos guiar por sua magia.


[1] Stan Brakhage, “Metáforas da Visão”. Traduzido pelo autor do original em inglês