Os Fabelmans, os Banshees e o Shyamalan: visões de cinema
09 julho 2023 às 18h42
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*Matéria originalmente publicada em 16 fevereiro 2023
Os filmes Os Fabelmans (2022), Os Banshees de Inisherin (2022) e Batem à Porta (2023), de Steven Spielberg, Martin McDonagh e M. Night Shyamalan ganharam reconhecimento neste ano. Três filmes, três grandes produções, três autores? Antes de responder e falar um pouco das minhas percepções sobre cada um, um adendo: entre os textos que escrevi para o Jornal Opção, este será o mais carregado de opinião. São considerações sobre os filmes e diretores, e não há crítica, análise, resenha, ou texto sobre arte que seja imparcial, portanto, convido o leitor a ler, ver, concordar e discordar.
“Este é o meu filme mais pessoal, e também uma carta de amor ao cinema.” Quem foi assistir Os Fabelmans no cinema ouviu o recado do diretor Steven Spielberg agradecendo aos espectadores por terem ido até o cinema ver o filme da sua vida e sua carta de amor, antes do filme em si começar. É a história de um menino que depois de ir ao cinema pela primeira vez descobre a paixão de fazer seus próprios filmes, e vai conciliar isso com seus estudos, vontades próprias, judaísmo, e principalmente sua família ao longo dos anos. Sim, com certeza o filme mais pessoal do Spielberg, aliás, o protagonista se chama Sammy Fabelman, provavelmente um trocadilho com fable-man: homem-fábula no português.
Com certeza também é um filme de Spielberg, sua forma está tanto aqui quanto estava em clássicos como Tubarão (1975) e E.T (1982), para o bem ou para o mal. Para o bem porque rende, vende, entretém e até encanta boa parte do público. Para o mal porque tem uma luz branca gritando no fundo de várias cenas que tudo ali é falso, o que faz, mais uma vez, parecer uma propaganda disfarçada de esperança, a mesma de E.T e Jurassic Park (1993). Estão aqui também os mesmos enquadramentos genéricos que tentam pregar um moralismo que nunca foi muito justo, ou no mínimo autoconsciente, como o de A Lista de Schindler, em que Spielberg faz do sofrimento de vítimas do holocausto uma forma de entretenimento, é sua versão de Capitalismo Salva Vidas – O Filme.
Mas voltando a Os Fabelmans, a questão é que há uma diferença entre ser um filme de Spielberg e do Spielberg. A forma do diretor já foi tão replicada, por ele e por outros, que para fazer o filme do Spielberg (sua vida), ele poderia ter chamado qualquer outro realizador para fazê-lo (um filme de Spielberg não implica, na lógica interna deste texto, que o próprio o dirigiu). O que não é o caso do homenageado em Os Fabelmans, John Ford, colocado no filme como o melhor diretor americano da história, porque um filme de John Ford só faz John Ford, porque todos são e parecem ser do autor John Ford. É no mínimo curioso que o filme mais pessoal de Spielberg possa ser replicado por vários Spielbergs que saibam filmar da maneira mais genérica conhecida por aí. É também curioso que uma carta de amor ao cinema seja enquadrada e iluminada dessa maneira, um tanto desinteressante. Fazer da sua vida um filme (aqui uma mentira, um plástico azulado) não é fazer o filme ser e ter vida. O primeiro faz Spielberg, o segundo é John Ford.
Falta de autoria: fenômeno comum a Os Banshees de Inisherin, de Martin McDonagh: quando Colm repentinamente põe fim à sua amizade com Pádraic, este faz de tudo para reconstruir os laços com aquele, ou colocar de vez um fim em tudo. O filme sugere um breve pensamento sobre solidão, isolamento (os dois, solteiros, moram em uma pequena ilha na Irlanda), a vontade de ser eterno sozinho e se queimar por isso; breve porque seus planos são os menos inspirados da carreira de McDonagh, que já foi mais criativo em In Bruges (2008), ou em Três Anúncios Para um Crime (2017). Planos óbvios que não sustentam em nada uma história que já é pouca coisa, quando não, McDonagh apela para queimaduras e mutilações para tentar mostrar uma força narrativa ou ser diferente, não mostra e não é.
Nessa linha, o que esperar do novo filme de M. Night Shyamalan, que, geralmente, entre os três diretores citados aqui é o menos querido por críticos e público? Espere o que quiser, mas Batem à Porta é um filme de Shyamalan e do Shyamalan. Nele, durante as férias em uma cabana remota, uma menina e seus pais são feitos reféns por quatro estranhos armados que exigem que a família faça uma escolha impensável para evitar o apocalipse. Premissa grandiosa, drama familiar, escolhas impossíveis, fim dos tempos, é verdadeiramente Shyamalan, e mesmo que este seja seu filme mais fraco desde Fragmentado (2016), ainda é um dos melhores norte americanos dos últimos anos, assim como Vidro (2019) e Tempo (2021).
Porque poucos diretores de lá tratam o hoje como Shyamalan, com uma frontalidade, um imediatismo, sendo direto no que quer falar e mostrar, entendendo que cada plano carrega um peso em si e que essas escolhas se desdobram em consequências que podem ser ainda mais drásticas. Os minutos finais daqui são abençoados, dão sentido a todo o filme – o porquê da frontalidade, a solução/resposta do imediatismo, o ser direto porque não há tempo para rodeios e conectam tudo ao sagrado imutável que sempre esteve em Shyamalan. Além do credo religioso, acreditar num amor e saber amar o que é visto antes de perder o que não vemos. O filme, após tanto caos e violência, se resolve na conversa entre pai e filha, é conseguir fazer um cinema sobre a fé apenas com a expressão de um rosto, é coisa de autor, para fazer os mais velhos pedirem bênção às crianças.
Alguns disseram que o verdadeiro Shyamalan havia voltado à boa forma com Batem à Porta, mas quem fez Vidro e Tempo nos últimos quatro anos, entendendo e tratando o cinema e seu tempo de maneira direta e com coragem, nunca deixou de ser bom autor. Se o cinema está acabando (se Spielberg precisa agradecer o público por ter ido ver seu filme no cinema, como se o próprio não tivesse pavimentado o caminho para Hollywood estar como está), esqueceram de avisar Shyamalan, porque, pelo menos para ele, enquanto as crianças tiverem fé no amor das histórias e pelas histórias, ainda haverá cinema.