Medo e delírio no sonho americano

19 julho 2024 às 19h32

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Diogo Alves
Poucas coisas são tão idealizadas e romantizadas quanto o cotidiano. A partir de uma visão utópica do dia a dia surgem expectativas, objetivos e, principalmente, sonhos. Nessa dimensão onírica, ainda mais do que na cotidiana, reside a principal fortaleza ideológica que fundamenta o estilo de vida estadunidense conhecido como “sonho americano”. Desde a independência pós escola/universidade até a estabilização financeira fruto do trabalho, passando por um matrimônio bem-sucedido e, preferencialmente, precoce, estabelece-se um ideário comum a toda uma nação, propagado e vendido também através de incontáveis formas de arte, em especial através do cinema. Um inconsciente coletivo que, de tão sólido, permanece existente somente nos sonhos.
Sonhar é, então, uma das principais maneiras de escapar da realidade e manter-se calcado nessa dimensão ideal. Quanto mais alto e distante for o sonho, melhor. Ainda mais quando o cotidiano não poderia estar mais distante da utopia e quando os sonhos se aproximam mais da inerente violência do que do distante romance. Um espelho torna-se uma janela para o abismo, uma cozinha torna-se lar de atrocidades, um quarto e uma sala de estar, os hospedeiros de todo o mal.
Retratar e subverter a dinâmica de sacralidade do cotidiano, em especial através dos sonhos, sempre foi a melhor característica do cinema de David Lynch. Como esquecer de Cidade dos Sonhos, da sequência inicial de Veludo Azul e de toda sua filmografia pós Duna? Mais do que somente um surrealista convicto, Lynch é um dos principais iconoclastas e pensadores referentes ao dia a dia estadunidense, em especial à sua dimensão microscópica de terror que potencializa muito do que é conhecido naquele país.
Através de características estético-formais que mesclam tanto performances exacerbadas de tendências dramatúrgicas da Hollywood clássica em seus atores até trabalhos experimentais com a iluminação e o uso de lentes grande-angulares para retratar e superdimensionar os espaços, Lynch é alguém que se aproveita das heranças cinematográficas de seu país para criar algo novo e profundamente autoral. É, talvez ao lado de Francis Ford Coppola (muitas vezes subestimado) e de Martin Scorsese, um dos poucos diretores muito aclamados por parte da crítica americana e das audiências em geral que realmente está à altura do louvor que recebe, sendo parte significativa da história do cinema.
Maior expoente do surrealismo em obras comerciais, Lynch se debruça sobre a dinâmica dos interiores estadunidenses e sobre uma conjunção de convenções de gêneros cinematográficos para criar, ao lado de Mark Frost, seu aclamadíssimo trabalho para televisão, a série Twin Peaks. Originalmente exibida pela ABC no ano de 1990, acompanhamos a jornada de Dale Cooper, agente especial do FBI, até a pequena cidade cujo nome dá título à obra. Após o assassinato da jovem Laura Palmer, evento inicial da trama, uma espiral descendente nos guia rumo a uma onírica e surreal jornada pelos meandros e mais cínicos limiares do mal inerente a cada um dos habitantes daquele pacato território.
Aproveitando-se de dinâmicas do cinema de terror, em especial do slasher, o que há de mais rico e subversivo em termos de pensamento cinematográfico nos Estados Unidos (impossível não lembrar de Salem’s Lot, obra-prima de 1979 dirigida por Tobe Hooper, talvez o nome definitivo do cinema estadunidense), e da ampla duração e maior desenvolvimento permitido pelas séries de televisão, somos mergulhados profundamente em todas as nuances da pequena cidade, e consequentemente do sonho americano. Presenciamos todas os adultérios que questionam o pilar do casamento, ainda que a moral novelesca da obra jamais permita que os amantes fiquem juntos. Observamos como o mal surge dos mais banais e cotidianos dos espaços, e como todos que os perpetuam acabam sendo punidos. É também das punições e dos sacros espaços interiores, justamente, que nascem as sugestões surreais para as resoluções do agente Cooper, em especial nos momentos mais derradeiros.
Parece que toda a decupagem e a lógica visual mais novelesca da obra, alinhando-se com uma moral punitivista, nos demonstra que de nada vale aproximar-nos e afeiçoar-nos daqueles personagens, uma vez que os segredos resididos em seus esconderijos cotidianos estão a dois passos de serem violados. É curioso como, portanto, dois dos personagens com menos segredos, mais bem desenvolvidos e mais dispostos a solucionar todas aquelas questões (seja no âmbito criminal ou no cotidiano), o próprio Cooper e Audrey Horne, com quem o agente tem uma relação bastante complexa na primeira temporada, sejam dados os mais trágicos dos destinos.
Ainda que a fantástica primeira temporada seja mais sugestiva e mais próxima de uma construção de terror, é a segunda, mais difusa, um pouco problemática em termos rítmicos e de variação de tom, que nos demonstra mais explicitamente todo aquele mal se desenrolando. Primeiro, com a descoberta do assassino de Laura e como ele volta a agir, a queda dos vilões menos surreais, e depois, com a inevitável nêmesis de Cooper. O arco de Bem Horne é divertido e uma representação fantástica do que é ser, na realidade, um bilionário. Violento, sempre através dos outros, pois lhe falta coragem, e inescrupuloso para alcançar seus objetivos, cai como Ícaro e, após cair em um delírio confederado e promover o mal a inúmeros conterrâneos, passa a se preocupar com o bem-estar humano e ambiental única e exclusivamente para recuperar o título de posse de sua maior fonte de investimento.
É uma pena que a segunda temporada se perca em alguns momentos repetitivos, em especial quando o ótimo timing cômico da primeira temporada é expandido aqui em arcos pouquíssimo funcionais como o de Nadine, ou então quando o romance sugestivo se esvazia como no arco de James. Compreensível, também, pelo fato de ser muito mais difícil sustentar vinte e dois episódios do que os oito da primeira, ainda mais tendo que atualizar uma trama sempre urgente. Entretanto, ainda assim há muitos méritos, em especial quanto à expansão daquele universo.
É justamente quando Lynch volta à direção, no último episódio da segunda temporada, que temos o melhor dos mundos. Tanto no cotidiano, com o fortalecimento da abordagem mais clássica, quanto nos momentos surreais e extraterrenos, onde o experimentalismo com as luzes e com a duração dos planos, alinhado à expansão e aprofundamento dos espaços, e do campo imagético, através das grande-angulares, há um domínio muito tátil tanto do adormecer no sonho quanto de seu despertar violento. Um é inseparável do outro, assim como bondade e mal são facetas de uma mesma moeda.
Dessa forma, Twin Peaks é, para além de um grande comentário televisivo e iconoclasta sobre o interior estadunidense, um lembrete sobre o terror do cotidiano. O quão danoso é o convívio com maridos agressivos, pais abusivos e irmãos sanguinários? Quando a beleza do dia a dia já não mais consegue ocultar seu odor putrefato, cabe a nós, pobres coitados, esconder-nos em nossos sonhos. E o que acontece quando eles resguardam algo ainda mais maligno? Cabe a Laura Palmer nos relembrar em Twin Peaks: Fire Walk With Me.
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