Mato Seco em Chamas: fricção entre cinema e realidade
06 abril 2023 às 18h49
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No começo de fevereiro, escrevia aqui, no Jornal Opção, sobre a Carta de Tiradentes e alguns caminhos para o cinema político no Brasil, em uma perspectiva de terra desolada. Alguns dias depois, Mato Seco em Chamas (Adirley Queirós, Joana Pimenta, 2023) chega ao circuito comercial em alguns poucos cinemas do país, depois de rodar o mundo dos festivais internacionais, e expõe toda sua grandiosidade, responde minhas perguntas e completa lacunas do nosso cinema.
Primeiro ponto importante e destoante: por quem e onde é feito Mato Seco em Chamas. A diretora e fotógrafa (louvável trabalho) é a portuguesa Joana Pimenta, e o diretor é Adirley Queirós, nascido em Morro Agudo de Goiás, mas morador de Ceilândia, região administrativa do Distrito Federal. E é lá, nesse mato seco, mais especificamente na favela do Sol Nascente, o terreno do documentário/ficção: a principal moeda de troca entre grupos inimigos é o petróleo. Chitara, grande gasolineira da região, tenta fidelizar a clientela junto ao seu poço particular com a ajuda da irmã. Quando o Brasil se torna mais conservador e ameaça votar na extrema-direita, o posicionamento de Chitara se transforma em um ato político. Ou também, uma história de resistência de mulheres pretas e lésbicas, com toques de ficção científica, faroeste e drama político. Já a partir daí, o maior expoente do novíssimo cinema brasileiro, movimento de renovação do cinema do país com predominância no Nordeste e Minas Gerais (André Novais, Gabriel Martins, Marcelo Gomes, Karim Ainouz, Juliana Rojas…).
Não pretendo me prolongar para além da sinopse (que também não diz nada), porque prefiro que o épico fale por si só, mas é empolgante o cinema que reside em Mato Seco em Chamas, já que planos tão bem construídos são em si universos complexos – para além da aridez violenta natural de Ceilândia – e permitem que o espectador penetre na duração de cada uma delas. Por exemplo, duas sequências que se sucedem e são diametricamente diferentes quanto ao que está em tela, mas possuem a mesma força humana: na primeira, Chiara está em um louvor, e os diretores deixam que fiquemos um bom tempo com ela ali, cantando e ouvindo os clamores; na segunda, Léa está em um ônibus lotado de mulheres que se beijam e festejam, os cantos religiosos agora se transformam no funk Helicóptero, de Dj Guuga.
Porque não importa o que está sendo filmado, se o que é está tão cheio de significado, se as sequências fluem entre si evidenciando não só a liberdade de uma câmera que pretende observar a vida daquelas mulheres, afinal, viver é um ato político, mas também o que faz desses seres, humanos. Ainda que em um cenário distópico, ou melhor, se em um cenário distópico, é porque Ceilândia se deu assim, e Queirós e Pimenta estão apenas iluminando o cotidiano. Se Branco Sai, Preto Fica (Adirley Queirós, 2014) era um filme mais do som do que das imagens, Mato Seco é essencialmente imagético, cada cena vibra em vida, cada palavra dita carrega uma verdade que só poderia estar numa ficção.
Está aí outra dicotomia do filme – além da luta de classes, da disputa por território, da vitória de Bolsonaro contra a resistência nas favelas –, documentário ou ficção? Ora um, ora outro, talvez sempre os dois. Mato Seco em Chamas se expõe como algo que está sendo feito enquanto filmado, como cinema da verdade, mas que se permite mentir, é indefinível, é confuso, e por isso tão belo, uma realidade tão honesta daquelas mulheres, que nos perdemos nas mentiras dos diretores, que são até citados pelas personagens (ou não personagens) durante o filme. Se mentira ou não, pouco importa, porque cinema. Sobre essa fricção áspera entre realidades e a experiência do cinema, não apenas para os espectadores, mas também realizadores, faço minhas as palavras do psicólogo alemão Hugo Mauerhofer, para finalizar:
“Um dos elementos essenciais da situação cinema é o que podemos chamar de sua função psicoterapêutica. O cinema provoca respostas que substituem aspirações e fantasias sempre proteladas; oferece compensação para vidas que perderam grande parte de sua substância. Tratase de uma necessidade moderna, ainda não cantada em versos. O cinema nos faz ficar tristes e nos faz ficar alegres. Incita-nos à reflexão e nos livra das preocupações. Alivia o fardo da vida cotidiana e serve de alimento à nossa imaginação empobrecida. É um amplo reservatório contra o tédio e uma rede indestrutível para os sonhos. A cada dia milhões de pessoas buscam seu isolamento, seu grato anonimato, a neutralidade do seu apelo ao ego, a história narrada de forma compacta, o colorido jogo de emoção, força e amor que risca a tela. Depois, transitoriamente mudadas, saem à luz do dia ou para a noite; cada qual agora seu próprio filme, cada qual possuída do ‘brilhante reflexo’ da vida – ou, pelo menos, da imagem desse reflexo – até que a realidade inexorável as recupere para sua característica aspereza.”
MAUERHOFER, A psicologia da experiência cinematográfica
Comecei o texto sem saber realmente o que iria falar sobre um filme que me é tão caro e já tão transformador, termino sem saber se o que disse ficou claro, então, para não deixar dúvidas, a mensagem é: vejam Mato Seco em Chamas, e também Branco Sai Preto Fica, Marte Um, Andança – Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho, Cabeça de Nêgo, Vida Invisível e tantos outros do nosso cinema brasileiro, porque ainda há quem regue este mato seco em chamas.