Em breve resumo, são filmes que analisam seus respectivos contextos e utilizam de suas formas para propor conversas, soluções, ou até realizações de que não há o que fazer. Aqui provavelmente onde se encontra a maior ligação entre Godard e o escritor Jorge Luis Borges, porque ambos misturavam o escrever com o que é escrever, a realidade e a ficção, documentário e o romance, por vezes imperceptíveis as fusões, mas por isso, sempre geniais.Uma fase necessária de transição entre os anos 60 e 80.

Na década de 80 é curioso analisar até o ano de lançamento de cada filme em comparação com a de 60. 62, 63, 65: Viver a Vida, O Desprezo, Alphaville. 82, 83, 85: Paixão (Passion), Carmen de Godard (Prénom Carmen) e Eu vos saúdo, Maria (Je vous salue, Marie). Troca de mundo e de musas. A Trilogia do Sublime (como são chamados esses filmes) vem para trocar os rostos pelos corpos, as necessidades de um novo cinema que atinge relações sagradas pelo controle a liberdade desses objetos. Se nos anos 60 o grande destaque do Godard era a movimentação de câmera e planos, nos 80 o poder é muito mais por uma plenitude dessa montagem, a contemplação do corpo, que segue buscando ser livre.

Paixão começa essa organização do movimento pelo cinema (já que, segundo Lenin, “o proletariado tem como única arma, na sua luta pelo poder, a organização”, e que o “cinema é para nós a arte mais importante”, o milagre de Godard é atingir a organização pelo movimento). É um falso documentário sobre luz e câmera, se torna uma observação leninista do corpo. Carmen parece ser mais espontâneo em relação à movimentação, das pessoas e do próprio filme, é um tanto mais solto, mas continua sereno. Eu Vos Saúdo, Maria, é o debate final entre corpo, alma e liberdade, talvez nunca uma mulher tenha sido tão bem filmada, e se Deus é voyeur, o que nós, obedecendo ou não, somos? Como em alguns momentos uma continuação de Viver a Vida, o plano final é sim o close de um rosto, mas este representa toda a liberdade corpórea dessa fase Godardiana. Os 60s são os definidores do poder de sua mise en scène (sua encenação), Viver a Vida, O Desprezo, Alphaville, filmes marcos. Mas os 80s o levam ao que é ser milagroso. Apesar das mudanças, sempre político, sempre sobre amor, sempre buscando movimentos cada vez mais sagrados. Só não quando o próprio quer destruir o movimento.

Entre essa trilogia existem dois filmes um tanto diferentes, o primeiro deles, Salve-se Quem Puder (A Vida) (Sauve qui peut [la vie], 1980), mostra personagens que parecem estar em um fluxo atônito de sensações, indiferentes à qualquer tipo de variação no cotidiano, Godard então quebra a movimentação ao travar a imagem, utilizar câmera lenta, para realmente pausar em momentos que deveriam ser valorizados, forma e conteúdo, como sempre, dizendo a mesma coisa. A musa aqui tem grande nome, Isabelle Huppert, e é perfeita como corpo símbolo disso tudo, um filme que é, desde seu título, uma tentativa de escapar da efemeridade. Tema comum a Ascenção e queda de uma pequena produtora de cinema (Grandeur et décadence d’un petit commerce de cinéma, 1986), filme que está em algum lugar abençoado entre Week-end à Francesa e O Desprezo. Godard se faz extremamente presente, em uma proximidade ao filme (em todos os sentidos da palavra, a película, o fazer fílmico, a projeção, o processo), que é diferente daquela dos filmes que ainda viriam como JLG por JLG (JLG/JLG, autoportrait de décembre, 1994) , Adeus à Linguagem (Adieu Au Langage, 2014), Imagem e Palavra, e que já existiam como Número Deux, em que o diretor realmente aparece na tela, mas que mesmo assim parece ser a mais viva, a que mais se sente em sua totalidade (se já foi Anna Karina, Jean Seberg, Brigitte Bardot, agora o corpo é Jean-Luc Godard). Na falsidade e na efemeridade:

Olhe para Gaspar. O cinema o matou. Eu não queria que isso acontecesse com você.
Agora sei por que os primeiros filmes eram em preto e branco, como eram as primeiras fotografias. Eles eram um reflexo do luto da vida!

(GODARD, 1986, no filme)

Em 87, Atenção à Direita (Soigne ta droite), em que Godard como ator, mais uma vez reconhecendo suas fronteiras, precisa de outro ator para ser Godard autor, porque este tem limites, porque sabe que a morte é o caminho para a luz, entre a vida e o além. Filme que está por um cinema que saiba encontrar a luz antes do além, que sabe que a existência é entender em vida o que é existir. E que “antes de morrer, Goethe falou: já basta”, um dia se bastou, mas Godard existiu.

E já entrando na década de 90, especificamente no ano de 1990, Francis Coppola volta a O Poderoso Chefão (The Godfather, 72,74, 90) para finalizar a trilogia, Martin Scorsese e Abel Ferrara continuam na máfia (GoodFellas e King of New York, respectivamente), Robert Zemeckis volta ao passado e termina De Volta para o Futuro (Back to the Future, 85, 89, 90), Éric Rohmer inicia os Contos das Estações, e também no romance Wong Kar-wai faz um filme que se assemelha ao que havia lançado antes. Akira Kurosawa volta aos seus sonhos e lança Sonhos (Yume).

Nessas repetições e buscas por memórias, aliás

A memória é o único paraíso do qual não podemos escapar.
Isso nem sempre é verdade.
Então a memória é o único inferno a que nos condenamos com toda a inocência.
Pela primeira vez temos a oportunidade de dizer coisas pela última vez.

(Diálogo entre dois personagens do filme Nouvelle Vague)

Godard, o autor banhado de autoconsciência como sempre foi, faz Nouvelle Vague, o filme que não é nada antes de ser puro movimento. E aí sim, com e por causa dele, traz os temas comuns aos seus companheiros, mas também o que sempre foi dele: tempo, dinheiro, amor, morte, o próprio movimento, renascimento. (Paixão, Carmen, Eu Vos Saúdo, Maria, Salve-se Quem Puder, Detetive…). Até porque Nouvelle Vague é coisa para encontrar o autor ente os autores:

Não preciso colocar meu nome nos créditos, onde me vejo mais como um produtor. O
conceito de autor foi desviado. Então, a partir deste momento mudamos o fuzil de
ombro, se você me entende. Há autores por toda parte, há muitos. Não pode haver 36
autores. Existe um Picasso, um Rembrandt, um Mozart, um Stravinsky, um Platini no
futebol, não há 36000.

(Godard em entrevista ao Festival de Cannes)

1993: três filme impossíveis de serem ignorados. O primeiro é Les enfants jouent à la Russie, porque entende que tudo que é filmado tem um peso, porque se Imagem e Palavra é todo filme de Godard, é porque Les enfants jouent à la Russie é tanto Histoire (s) du Cinéma (1998) – obra mais complexa, completa e poética de sua carreira, já que é o maior diretor dissertando sobre a história do cinema – quanto Elogio ao Amor (Éloge de l’amour, 2001) – 40 anos depois de Acossado, perderam-se muitas coisas até a virada do século, como já haviam se perdido antes, a humanidade e o amor talvez como as principais delas, mas manteve-se o autor que ensinou que ir pra frente nem sempre é avançar. Um preto e branco mais triste do que aquele de 1960, e o colorido não quer ser nem um pouco mais feliz. O cinema só não se perdeu também porque Godard fazia do pessimismo esperança, guiando os caminhos da luz. Também porque Les enfants previa Jojo Rabbit (2019, Taika Waititi) enquanto falava de A Lista de Schindler (1992, Steven Spielberg):

E o cinema? Meu querido senhor. Está morto há muito tempo. Nós levamos Melies, Stroheim e Einsenstein ao suicídio. Nós pagamos alguns alemães para criar a Universal, para inventar o Mickey Mouse. E atualmente estamos tendo Auschwitz reconstruído por Steven Spielberg. Com Hitler e Napoleão, todas as pessoas inteligentes se aproveitaram desta pobre Rússia para invadi-la mais uma vez. Por que o Ocidente quer invadir este país? É simples: porque é o lar da ficção, e o Ocidente não sabe mais o que inventar.

(Diálogo entre personagens de Les enfants jouent à la Russie)

O segundo é um curta: Eu vos saúdo, Sarajevo (Je vous salue, Sarajevo), dois minutos de fotomontagem sobre a Guerra da Bósnia, que mais são dois minutos de 93 representando o cinema e Godard de 55 a 2018, em dois minutos, 63 anos de cultura. O terceiro é Infelizmente Para Mim (Hélas Pour Moi), o mais plástico Godard (o que para ele não significa nada), em que um diretor de cinema é Deus, o mais pretensioso Godard, graças a Deus.

Nos anos seguintes prosseguiu com seus filmes-ensaios sobre cinema, política, fragmentação, amor. E por que Imagem e Palavra de 2018 é todo filme de Godard? Não só por ser o último, mas por ser Godard na finalidade dos atos, é o filme triste, porque os 70s não foram só uma transição, mas a fase que mais esteve presente até o final de sua carreira. É ainda a impotência do cinema, ou pior, do diretor, como se toda a abstração daqui representasse que todos os anos de trabalho fossem nada. Não foram, e também por isso é todo filme de Godard, porque por mais difícil e pessimista que seja, ainda é revolucionário, revolução de um autor que não se perdeu. Adeus à Linguagem (Adie au langage), o maior exemplo disso: em 2014 Godard lança o filme 3D, e provavelmente o único filme verdadeiramente 3D. Não foi a primeira vez que ele deu adeus à linguagem, mas por ser sempre dialético, a tensão de planos 2D x 3D dá olá à linguagem mais uma vez. E dessa vez o filósofo não é o corpo, a câmera, o estudante, mas o cachorro 3D, que é basilar, é estrutural, é 63 anos de Godard. Claro, 2014 não foi a última vez que ele deu adeus à linguagem, isso deve ter acontecido em 13 de setembro de 2022, data de sua despedida, seu último adeus, mas mesmo assim, ah Deus, uma boas-vindas ao caminho da luz.

Ou seja, de 1955 até 2018, do preto e branco ao 3D, dos rostos aos corpos, de Faulkner a Borges, de Anna Karina a Anne-Marie Miéville, do marxismo ao maoísmo, de Paris a Sarajevo, de Sarajevo a Cannes, e de Cannes a Rolle, onde escolheu ficar, Godard nunca deixou de criar, experimentar, revolucionar e teorizar sobre as possibilidades do cinema, sem abandonar seus temas principais. Acompanhar a história do autor é acompanhar a história da sociedade, e consequentemente do cinema, para que, mesmo que a revolução não aconteça, o adeus à linguagem seja na verdade uma tentativa de se manter vivo.