Crítica: terror argentino ‘O mal que nos habita’ transpõe limites do repugnante e do maligno
21 abril 2024 às 17h33
COMPARTILHAR
*Atenção! Este texto contém spoilers
Fãs do gênero terror costumam se decepcionar frequentemente com filmes que, como prega a gíria de internet, “prometem tudo e entregam nada”. Afinal, quanto mais se gosta de algo, mais exigente se fica sobre a qualidade daquilo. Produções que se acomodam nos clichês hollywoodianos e cavam mais do mesmo, com jumpscares baratos e histórias amarradas de forma apressada e desconexa, como que dizendo “O filme está acabando, precisamos matar alguém logo e dar um final feliz para o resto”, saltam aos montes do cinema. Até que nos deparamos com obras como ‘O mal que nos habita’, terror argentino dirigido por Demián Rugna e lançado neste ano no Brasil.
A impressão que se tem é que a produção latino-americana é uma resposta impaciente às reclamações dos fãs de terror. Algo como: “É terror que vocês querem? Então tomem logo!”. O filme, que tem cerca de 1h40min de duração e nomes como Ezequiel Rodrigues, Demián Salomón e Silvina Sabater (que entrega uma atuação incrível no papel de Mirta) no elenco, se propõe a ser maligno a qualquer custo. Chocar pelo inconcebível e aterrorizar pelo desumano. E consegue isso de forma impressionante.
A tensão de ‘O mal que nos habita’ começa a ser construída logo nos primeiros minutos. Dois irmãos em uma fazenda ouvem tiros ao longe, na madrugada, e começam a se preocupar sobre o que teria ocorrido. A tensão deles vira a do espectador, que já percebe que algo de muito sombrio está prestar a começar – ou já começou.
Ouso dizer que a atmosfera e os ambientes do filme podem ter um peso a mais para goianos e mineiros, populações que, em boa parte, têm seus ancestrais vindos da zona rural – a chamada “roça”. É como se estivéssemos assistindo, ali na tela, a materialização das histórias de assombração que nossos avós costumavam contar, coisas sobrenaturais que teriam sido presenciadas décadas atrás em antigas fazendas e casarões.
A perdição dos irmãos e da comunidade rural em que vivem – ou ‘aldeia’, como o lugar é denominado – começa a se desembaraçar diante de nossos olhos quando os homens encontram um corpo destroçado na mata. A cena em que eles conjecturam sobre o que teria ocorrido, enquanto um deles tenta impedir que seu cachorro continue comendo as vísceras do cadáver espalhadas pelo chão é repugnante, assim como boa parte do filme.
Acontece que aquele corpo decepado era nada menos do que um executor especialista que havia sido chamado para matar um “possuído”, ou seja, um homem que passou a ser o receptáculo de um demônio. O possuído, por sua vez, quando aparece na tela, mostra a que veio o filme: uma figura disforme e inchada, repleta de pústulas, muco, fezes e urina, deitada sobre uma cama em uma casinha que poderia facilmente ser encontrada em qualquer interior goiano por aí.
O medo que recai sobre a população local é palpável. A história de que haveria um possuído ali, naquela região, começa a circular e, com ela, um rastro de calamidades indizíveis. O demônio em questão, aparentemente invencível, se espalha literalmente como um vírus, provocando desde cenas como um cão enlouquecido dilacerando uma criança, uma mãe caminhando pela rua enquanto se alimenta de pedaços do corpo de seu filho morto em seus braços, até um menino com espectro autista vomitando partes do corpo de sua avó, após devorá-la.
A fotografia e a sonoplastia são um espetáculo à parte. Como dito por alguns dos personagens, os animais sentem e o ambiente muda quando o demônio está prestes a chegar. Os ambientes rurais no filme carregam um peso maligno, uma tensão que faz com que o espectador se retorça na cadeira de angústia.
Enquanto tentam seguir regras das lendas, como evitar a luz elétrica, se atentar às sombras que se movem e ao comportamento dos animais, e evitar – ou mesmo se acostumar – ao banho de sangue e profanidade por onde passam, os dois irmãos, acompanhado por anciãs e crianças, emplacam um ritmo de frenesi para tentar impedir o nascimento final do demônio.
O filme não oferece momentos para respirar. Enquanto se recupera da cena em que uma esposa mata seu marido com um machado, e depois se mata, após o homem matar de forma equivocada uma cabra sob influência demoníaca (recipientes do demônio não podem ser mortos com pólvora), o espectador já se depara com a imagem de um cachorro correndo pela rua carregando uma pequena menina pelo pescoço.
‘O mal que nos habita’ não se compromete com moralismos e limites, e decide ir até o fim na sanguinolência e horror. E, é claro, aqui não há finais felizes. O filme é indigesto, quase obsceno, e, por óbvio, não é para qualquer um. Mas é mais uma prova de que o terror de verdade segue mais vivo do que nunca.