Entre os dias 20 e 28 do último mês aconteceu a 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes, um dos mais importantes e tradicionais festivais do país, e talvez o que passou de mais importante nesses dias não tenha sido nenhum filme, mas a Carta de Tiradentes, documento feito pelo fórum do festival, que começa:

“Como se destrói um país? Como se constrói um país?

Do golpe de estado de 2016 à tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, o Brasil conheceu um dos períodos mais obscuros e desafiadores de sua história. E também redescobriu a força e a resiliência da sociedade civil organizada, particularmente das trabalhadoras e trabalhadores das artes, que mesmo imersos em uma guerra cultural absurda, alijados de políticas e programas de investimento do governo federal, resistiram à criminalização e ao desmonte perverso da máquina pública. Dentre as artes, uma das mais afetadas, perseguidas e quase que totalmente paralisadas está o audiovisual brasileiro independente.

Da organização institucional à preservação, passando pela formação, produção, distribuição e exibição, não houve área do audiovisual imune ao ímpeto destrutivo da última gestão do Estado brasileiro. A pulsão de morte típica dos regimes nazifascistas, que se abateu sobre o país e o setor cultural, se materializou em acontecimentos trágicos, como os recentes e furiosos ataques às sedes dos poderes da República, e as chamas que consumiram filmes e documentos no incêndio de um dos depósitos da Cinemateca Brasileira.”

Diante da situação, o documento, que pode ser conferido na íntegra no site oficial da mostra, coloca uma série de proposições a serem levadas ao Ministério da Cultura, em especial à Secretaria do Audiovisual e à Ancine, além de outros órgãos dos três poderes. As propostas envolvem leis, cotas, políticas e mecanismos a serem desenvolvidos para a manutenção do cinema brasileiro, que mercadologicamente é dominado pelo imperialismo estadunidense desde sua origem, situação que piorou nos anos de desgoverno Bolsonaro. Porque se com a produção regular, com incentivos e tudo aquilo garantido por lei, quase não há competição com o que é importado, sem regulamentações ela é inexistente.

Infelizmente, nesse momento de devastação a parte burocrática é sim a mais importante, porque pavimenta o caminho para que as produções possam existir, mas ainda há espaço para falar do cinema temática e estruturalmente resistente e revolucionário, dos filmes que podem servir de exemplo para os que hoje estampam as programações das mostras de cinema, e que deveriam estampar os cartazes das salas de alcance popular. Assim, impossível não começar pelo maior filme de nosso país, Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964, Glauber Rocha).

O vaqueiro Manoel e sua esposa estão fugindo no sertão de 1940 depois de matar um rico criador de gado; atormentados pela fome e violência, ambos fazem e desfazem alianças para descobrir, se unindo a ela, que a terra pertence ao povo. A partir daí, que não é um por cento de todo o filme, já há uma disrupção no sentido clássico da narrativa, Glauber não apresenta seus personagens, nem os que fogem, nem os que matam como Antônio das Mortes, como faria um John Ford nos faroestes americanos dos anos 50, todos estão ali porque todos sempre estiveram ali, o povo não precisa ser apresentado aos seus semelhantes. Mas o que tem de mais importante em Deus e o Diabo na Terra do Sol, o que viria a mudar a história do cinema brasileiro, e onde mora o gênio de Glauber Rocha, é a construção de um filme estruturalmente revolucionário.

Se os temas ainda estão presos, ou no mínimo retomam a Ford, Dreyer, Bergman, por exemplo, por mais que contextualizados em um Brasil assolado, a edição está muito mais próxima de Eisenstein com a montagem dialética que tornou possível Encouraçado Potemkin em 1925 ser o maior dos filmes verdadeiramente políticos e revolucionários. Os planos em Deus e o Diabo, que são próprios de Glauber do Brasil não se ligam um após o outro, mas fazem sentido em um todo, e significam, com a aparição de Corisco, um Lampião que também não sabe se é herói ou vilão, porque isso pouco importa, o milagre do cinema brasileiro. Filme marco que iria contar toda a história de um Brasil violento onde o povo sempre rogou a Deus e Diabo mas nunca teve a justa posse dessa terra em transe, mas de uma forma nunca antes vista, nem no cinema daqui, nem no de qualquer outro lugar. Por isso, mesmo que tudo seja uma catarse da união de Dreyer, Bergman, Eisenstein, Godard e Ford, Deus e o Diabo na Terra do Sol só é o que é porque é principalmente Glauber Rocha. O próprio filme já é todo o contexto de um cinema dominado, que se viu resumido no sertão brasileiro.

Mesmo assim, claro que na terra do Sol os filmes de Glauber (e de seus outros companheiros de Cinema Novo) não seriam suficientes para solidificar a revolução cinematográfica e fazer dessa arte de fato um integrante popular da cultura daqui. Aliás, o cinema foi de fato popular nos anos 60, 70 e 80 com as chanchadas e pornochanchadas, e que, devido à ditadura, escondem também uma resistência ao próprio fazer artístico da época. Em definição rasa as pornochanchadas seriam as produções com baixo orçamento caracterizadas por diálogos e cenas que unem humor e sexo explícito. De fato são elementos que faziam parte das obras, mas uma boa e preciosa parte delas utilizava do humor e erotismo para a obtenção de resultados muito maiores, como a crítica ao regime e aos “costumes tradicionais” da época.

A praia, as classes e o amor livre em O Império do Desejo | Foto: Reprodução

Pornochanchadas, como as de Carlos Reichenbach, Tereza Trautman, Jean Garret, Neville d’Almeida, Arnaldo Jabor e outros autores, temas como a homossexualidade, a independência feminina, as relações de classe frente à exploração do trabalho foram abordados não somente disfarçados de comédia e pornografia, mas através das próprias relações sexuais entre os personagens. É um período de muita autoconsciência por parte de alguns realizadores, que entenderam seu contexto e o fazer cinematográfico, encontrando no erotismo o que era vital para a resistência de um cinema genuinamente brasileiro e para brasileiros. Há também uma constante fuga da realidade em espaços místicos, como as praias de Reichenbach em O Império do Desejo (1980) e Ilha dos Prazeres Proibidos (1979), ou o Rio de Janeiro de Neville d’Almeida em Rio Babilônia (1985) mas uma fuga na encenação que sempre olha de volta para a materialidade para não esquecer o que realmente importa.

Cinema brasileiro é resistência, uma forma de arte que ainda atravessa repressões, censuras, desgovernos e atentados, e que hoje deve olhar para o passado procurando um caminho para os cineastas que queiram resistir. Porque a história já mostrou que na terra do Sol não bastam apenas cartas de Tiradentes para que seja possível filmar Deus, Diabo e povo, a revolução da forma ainda é necessária para que a resistência do conteúdo seja constante.