As duas faces de uma tragédia: a alienação e as principais premiações do cinema – parte 2

09 março 2023 às 15h38

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Para além de justiça e aclamação, toda premiação que se preze deve buscar uma constante atualização quanto aos seus critérios de avaliação, de modo a posicionar-se em um certo grau de ditames de tendências futuras à própria arte. Ainda assim, inevitavelmente refletem seu contexto espaço-temporal e suas amarras. Seguindo essa lógica, nas lideranças de indicações ao Oscar 2023, um filme que parece ser dirigido por uma inteligência artificial como o alemão Nada de Novo no Front, com 9 indicações, e talvez o filme mais capitalista dos últimos tempos, Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, com 11 nomeações e grande sensação da noite, demonstra-se que a Academia busca cada vez mais adequar-se a seu contexto e ainda visar o futuro, mas da forma mais patética e às avessas possível.
É notório que tal premiação jamais foi sinal de justiça, qualidade, e muito menos prestígio consensual, à exceção de um circuito muito específico de estúdios em Hollywood, que pouco representam diante da produção cinematográfica global, ainda mais em tempos de expansão digital. Ainda assim, é incrível como desde sempre, com raras exceções, premiam-se filmes que sequer são notórios por suas sensibilidades cinematográficas e muito menos pela sua popularidade com o grande público. Existe exemplo melhor para isso do que o fraquíssimo No Ritmo do Coração, vencedor máximo do ano passado?
Assim, as duas problemáticas lideranças de indicações, em um ano repleto de abominações entre os candidatos a Melhor Filme, parecem um aceno desesperado em busca de retirar o Oscar deste limbo que cada vez mais suga sua audiência e relevância. No entanto, virtuosismo técnico vazio não é sinal de qualidade magna em termos artísticos, ainda que seja a refilmagem de um clássico que já venceu o prêmio anteriormente, e muito menos o fato de um filme ter hype e popularidade em nichos muito específicos, como TikTok e Twitter, uma rede social que possui menos usuários do que o Pinterest, tornam-nos dignos de vencer um prêmio.
O pior ainda é quando tais características se unem em um teste de resistência de 139 minutos quase tão pretensioso quanto seu título. Dirigido pelos cineastas Daniel Kwan e Daniel Scheinert, responsáveis pelo lamentável e cult Um Cadáver para Sobreviver, Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo sintetiza todas as características mais abomináveis do capitalismo em seu estágio mais tardio. Desde uma ode à cultura de videomakers formados no YouTube e que nunca foram capazes de sentir uma imagem na vida até um desconjuntado apanhado de situações constrangedoras que parece um passeio por uma boutique de grife, onde as profundidades dos designs e preços não escondem o quão superficial tudo o que está exposto é, a obra é o ponto mais baixo que o cinema atingiu em sabe-se lá quanto tempo.
Os dois diretores, que têm certeza de que virtuosismo técnico é o mesmo que mercantilizar todas as situações, criam um feed infinitamente apático em forma de filme, escondendo um frágil drama central que reforça uma quantidade infindável de estereótipos e que é tão profundo e bem desenvolvido quanto um comercial de uma grande empresa que lucra diuturnamente com a exploração das pessoas que representa. Veja, caro leitor, não há problema algum em ser raso e superficial, desde que executado de forma minimamente honesta. No próprio cinema hollywoodiano atual temos exemplos funcionais desse fenômeno, como Ana Lily Amirpour e Michael Bay, que lançaram filmes incríveis nos últimos dois anos. O problema é quando se tenta vender como algo revolucionário e inovador, mas, na realidade, é o mais vazio que uma expressão artística pode ser.
Tudo em Todo Lugar… nada mais é do que um conjunto de trends virais imbecilizantes e o cinema utilizado da forma mais comercial possível. Parece que duas pessoas decidiram seguir todos os “tutoriais de cinema” do YouTube e fizeram um filme com uma montagem mais tosca (e que provavelmente ganhará o Oscar) que um videoclipe de Hair Metal dos anos 1980. Creio que quando Félix Guattari, um dos mais geniais filósofos e psicanalistas do século XX, falou, de forma excessivamente generalizada, sobre a problemática do cinema comercial e como render-se a ele é render-se à própria degradação da vida em si, na forma como gera uma cosmovisão que leva a um tipo específico de indivíduo com desejos extremamente reprimidos, não imaginava como viria a existir um exemplo tão perfeito para sua teorização. Além disso, ele, que relacionou a sublimação e elevação do ânus no capitalismo, provavelmente teria uma síncope ao ver o uso como arma de Tchékhov [1] dos troféus que a personagem de Jamie Lee Curtis ostenta no filme, em especial pelo seu formato.
Assim, trata-se de uma obra que nos leva a olhar para trás e pensar o que houve de tão errado para que chegássemos a esse ponto. Leva-nos a pensar também que, tal qual um pêndulo, para cada efeito positivo de um fenômeno, haverá algo equidistante e antagonicamente nocivo que surgiu das mesmas circunstâncias, em um inevitável paradoxo. Se a expansão digital propiciou que cineastas brilhantes e disruptivos, como Lav Diaz, pudessem fazer filmes magnânimos e primorosos sem nenhum orçamento, por outro lado, a diluição da imagem e analfabetismo do capitalismo (também teorizada por Félix Guattari e seu recorrente colaborador, o genial Gilles Deleuze) resultou em um golpe fatal à linguagem cinematográfica que permitiu que aberrações como Tudo em Todo Lugar… e Triângulo da Tristeza não só existissem, mas fossem amplamente financiados e laureados.
Assim, caro leitor, tais acontecimentos não surgem do nada. São reflexo e espelho de seu próprio tempo e de um dos maiores males que aflige o século XXI: a alienação. Max Horkheimer disse que quanto mais forte fosse a preocupação do homem para com as coisas materiais, mais forte seria sua submissão a elas e mais perdidos seriam suas peculiaridades individuais, e poucas expressividades humanas apresentam tal máxima tão à risca como os filmes citados. Dessa forma, o Oscar finalmente parece encontrar-se com seu tempo, mostrando-se cada vez mais alienado e desconexo da realidade e das qualidades emergentes na produção cinematográfica contemporânea, refém de uma era sequestrada por um modo de produção e organização social onde mais do que sentir, o que importa é consumir.
[1] Princípio dramático elaborado por Anton Tchékhov segundo o qual todos os objetos em cena deveriam ser utilizados na trama, e aqueles irrelevantes deveriam ser dispensados.