Cineasta João Batista de Andrade: “A literatura é a loucura que pode salvar o mundo”

19 dezembro 2015 às 10h56

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Com mais de 40 obras em sua filmografia, Andrade nunca deixou de manter estreita ligação com a literatura. O livro “Poeira e escuridão” acaba de chegar às prateleiras
Adelto Gonçalves
Especial para o Jornal Opção
“Poeira e escuridão” dá nome ao livro de contos do escritor João Batista de Andrade, também jornalista e professor, que a Associação Cultural LetraSelvagem, de Taubaté, em São Paulo, acaba de colocar no mercado. São onze contos escritos em linguagem cinematográfica, com narrativas que espocam como flashes e se superpõem até completar um quadro inteiro. E não poderia ser diferente, não fosse o seu autor um dos cineastas mais importantes do Brasil ainda em atividade.
Como diz o poeta, crítico e jornalista Luís Avelima — e também tradutor de, entre outras obras, “Gente Pobre” (LetraSelvagem, 2011), de Fiodor Dostoievski (1821-1881), antigo editor do jornal Voz da Unidade, do Partido Comunista Brasileiro (PCB), e ex-locutor da Rádio Central de Moscou —, no texto de apresentação do livro, os contos constituem “onze retratos que se costuram entre o telúrico e a dureza urbana, a revelar o dia que escorre em poesia de amor e dor, de lembrança, cenas do agora, que logo se tornam cacos na massa infame que nos cerca e que logo adiante se recosturam e ganham forma”. Para ele, Andrade se firma a cada livro e mostra nessa última obra que “a literatura é a loucura que pode salvar o mundo”.
Já o crítico Ademir Demarchi, doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), poeta e editor da revista cultural Babel, no prefácio que escreveu para o livro, prefere analisar, detidamente, os onze contos, sem deixar de apontar a sua relação com o cinema. E mostra para o leitor menos atento alguns detalhes como aquele que percebeu no conto “Ética pelas metades”: um carrinho de bebê põe à vista do leitor (espectador) uma famosa cena do clássico filme “O Encouraçado Potemkin” (1925), do russo Serguei Eisenstein (1898-1948), obra que é considerada, ao lado de “Cidadão Kane”, do norte-americano Orson Welles (1915-1985), uma das mais importantes na história do cinema.
Narrativas
Um dos contos mais bem urdidos desta coletânea — ainda que todos sejam relatos bem construídos, mesmo aqueles de página e meia — é “Morangos silvestres”, que encerra o livro. A narrativa é centrada em dois personagens, um mais velho, comunista sobrevivente de um massacre feito por esbirros da ditadura contra o seu grupo, e um jovem aspirante a revolucionário, cooptado pelo mais experiente, mas que, fora de lugar, parece ter chegado tarde ao mundo.
O diálogo ocorre exatamente num momento tenso em que ambos caminham por algumas ruas com o objetivo de cometer um atentado contra o presidente de uma republiqueta latino-americana, provavelmente um antigo pelego que, criado e amadurecido no ambiente dos sindicatos de trabalhadores, soubera como usar a linguagem populista de esquerda para encantar a população e perpetuar-se no poder eleição após eleição, traindo os ideais dos grupos esquerdistas que o ajudaram no início da caminhada. Eis um trecho do diálogo:
— Há um homem próximo de se eternizar no poder, ele saiu de nós, de nossa história, era a promessa de nossa vida, de nossa juventude, a esperança de que tudo voltasse a ser como antes, que a história não morresse, que o ar fosse de novo respirável. E ele nos traiu.
— Ele é apenas um homem — murmurou Ramírez.
— Quando chegam lá, eles deixam de ser “apenas um homem”.
É também numa republiqueta de pastelão, em que a cena política funciona sempre como farsa, que se passa o conto “O gato Guevara”, que faz lembrar “O outono do patriarca” (1975), de Gabriel García Márquez (1927-2014), “Tirano Banderas” (1926), de Ramón María del Valle-Inclán (1886-1936), e outros romances sobre a decadência de ditadores latino-americanos. Um general paspalhão, sem nunca ter chegado ao ápice da carreira, que seria a presidência da uma república bananeira, convive a contragosto com a abertura política que invade até mesmo a sua casa, com a presença de um cunhado “cabeludo, de brincos na orelha, irresponsável e transviado”, e até mesmo um gato que carrega nome de guerrilheiro, tudo em favor do bom convívio com a fogosa esposa Leonora.
No conto “No tempo do cinema”, Andrade deixa mais uma vez explícito o seu fascínio pela sétima arte e presta homenagem a Auguste Marie Louis Nicholas Lumière (1862-1954) e Louis Lumière (1864-1948), os irmãos Lumières, inventores do cinematógrafo, considerados os pais do cinema, filhos do industrial Antoine Lumière (1840-1911), dono da Usine Lumière, em Lyon, na França. O conto é composto por narrativas que igualmente se superpõem, enfocando a infância de meninas pobres, que se desdobram umas nas outras, como matrioscas russas, até dar numa jovem operária francesa que participa do primeiro filme dos Lumières.
Mais tarde, a jovem vem para o Brasil com o marido que iria negociar “filmadoras, projetores e até mesmo algumas pequenas latas circulares de rico conteúdo, filmes realizados pelos próprios Lumières que tanto sucesso faziam por toda parte”. Sem, contudo, esquecer o olhar do patrão Louis Lumière, por quem sonhava ser seduzida, paixão tão imorredoura que a levaria a dar o seu nome ao primeiro filho, ao primeiro neto e ao primeiro bisneto também.
Autor
Nascido em Ituiutaba, em Minas Gerais, João Batista de Andrade, militante do PCB na época mais dura da repressão promovida pela ditadura civil-militar (1964-1985), tornou-se nome conhecido nacionalmente como cineasta, depois da realização de filmes como “Doramundo”, vencedor do Festival de Gramado-RS, em 1978, inspirado no romance do jornalista Geraldo Ferraz (1905-1979), publicado em 1956; “O homem que virou suco”, Medalha de Ouro de Melhor Filme no Festival de Moscou, em 1981; “O tronco”, Prêmio de Melhor Filme pela Comissão das Comemorações dos 500 Anos do Brasil no Festival de Brasília, em 1999; e “Vlado, 30 anos depois”, de 2005, que reconstitui a trajetória do jornalista Vladimir Herzog (1937-1975), assassinado nos porões de uma unidade do Exército.
Com mais de 40 obras em sua filmografia, Andrade nunca deixou de manter estreita ligação com a literatura, tendo transportado para as telas, além de “Doramundo” e “O tronco”, de Bernardo Élis (1915-1997), outras obras literárias como “Veias e vinhos”, de Miguel Jorge (1933) e, seu 17º longa-metragem, “Vila dos confins”, de 2011, baseado em romance de Mário Palmério (1916-1996).

Em 1983, dirigiu “A próxima vítima”, um de seus melhores filmes, que causou forte impressão ao desmistificar violentamente a ilusão da abertura democrática, ainda à época em que o regime civil-militar já permitira o retorno dos exilados e baixara lei de anistia para os perseguidos e seus perseguidores. Em 1987, ganhou quase todos os prêmios do Festival de Brasília, com o polêmico “O país dos tenentes”, com temática também ligada ao fim do regime ditatorial.
Em 2010, foi o grande homenageado do Festival Latino-Americano de Cinema, em São Paulo. Foi secretário de Cultura do Estado de São Paulo de 2005 a 2007, quando criou a Lei da Cultura (Proac), com editais e incentivos para a produção cultural. Em 2012, foi nomeado presidente da Fundação Memorial da América Latina, cargo que ainda ocupa.
A par de sua carreira como cineasta, publicou mais sete livros de ficção, incluindo quatro romances: “A terra do Deus dará” (1980), romance infanto-juvenil; “Perdido no meio da rua”, escrito em 1964 e publicado 20 anos depois (Editora Global, 2ª ed., 1989); “Um olé em Deus”, publicado em 1989 e republicado pela Editora Scipione em 1997; “O portal dos sonhos” (Ufscar Editora, 2001); “Sozitos, a lenda da terra ronca” (Editora Lazuli, 2013), romance infanto-juvenil; “Confinados: memórias de um tempo sem saída” (Editora Prumo, 2013) e “A terra será azul” (Editora Lazuli, 2014).
Foi professor na Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP, onde, em 1999, defendeu a tese de doutorado “O povo fala — um cineasta na área de jornalismo da TV brasileira”, aprovada pela banca com distinção e louvor e publicada em 2002 pela Editora Senac, de São Paulo. A jornalista Maria do Rosário Caetano dedicou-lhe o estudo “João Batista de Andrade — alguma solidão e muitas histórias”, publicado pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, em 2010.
Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de “Os vira-latas da madrugada” (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), dentre outros.