Livro de Chico Buarque é um híbrido onde poções de realidade invadem o texto ficcional. E de repente camadas de ficção costuram o tecido da realidade

Ronaldo Werneck

Você já viu “Bacurau”? Essa a pergunta recorrente que volta-e-meia volta e volta novamente de forma joco-séria a cada apresentação do Greg News, o impagável seated down show de Gregório Duvivier. Você ainda não viu? Nem o programa e nem o excelente filme de Kléber Mendonça Filho?

“Essa Gente” é e não é um roman-à-clef, pois nele personagens e fatos são alternadamente reais e inventados | Foto: Divulgação

Kléber é um nome de destaque no cinema novo de Pernambuco, agora já internacional, de quem aprendi a gostar, e muito, desde o imperdível “O Som ao Redor”, visto há vários anos no Recife, com direito ao meu amigo, o multimídia artista W.J. Solha, em brilhante atuação. “Bacurau” é o máximo e repito aqui a pergunta-obsessão de Duvivier: você já viu “Bacurau”?

E “Essa Gente”, o último e ótimo livro de Chico Buarque? Você ainda não leu “Essa Gente”? Puxa, nem “Bacurau” nem “Essa Gente”? Pois eu, com a devida licença, o li de lê-lo em três sentadas. Literalmente: minhas melhores leituras, as mais atentas, são no banheiro, onde tenho uma pequena biblioteca: livros, jornais, dicionários, canetas, moleskine. Qualquer dia levo o laptop e não mais saio.

Hábito antigo, ali habito desde os idos de minha mocidade. O que me deixou/deixa marcas até mesmo cirúrgicas e para sempre ao sul e por detrás do Equador: mazelas hemorroidárias (evoé, Rosário Fusco!) hoje já devidamente incorporadas ao cotidiano. Ali habito, repito, cerca de hora e meia a cada dia. Lembro de uma namorada das antigas que me dizia sempre: “A melhor hora do dia é quando você sai do banheiro”. Há Controvérsias.

Um híbrido

Mas vamos a “Essa Gente”, que é um híbrido onde poções de realidade invadem o texto ficcional. E de repente camadas de ficção costuram o tecido da realidade. “Há pontos de contato entre Chico Buarque e o protagonista de ‘Essa Gente’. Além de escritor, Manuel Duarte tem esse sobrenome de perfil vocálico idêntico e gosta de bater pernas atrás de inspiração pelos arredores do Leblon”, diz Sérgio Rodrigues no texto das orelhas.

Mas a coisa para por aí. ‘Essa Gente’ é e não é um roman-à-clef, pois nele personagens e fatos são alternadamente reais e inventados. Muitas vezes a trama, centrada na homofonia Duarte/Buarque, resvala para um tom aqui e ali bem-humorado, aqui e ali policialesco — retratando não só conflitos internos como a brutal realidade do Rio de Janeiro (do país?) de hoje em dia.

Chico Buarque: muitas vezes a trama, centrada na homofonia Duarte/Buarque, resvala para um tom aqui e ali bem-humorado, aqui e ali policialesco — retratando não só conflitos internos como a brutal realidade do Rio de Janeiro (do país?) de hoje em dia | Foto: Divulgação

Exatamente de hoje em dia, pois se o livro abre com uma carta de Duarte para o seu editor, datada de 30 de novembro de 2018, ele fecha com uma reportagem “policialesca” de um jornal, datada do futuro 29 de novembro de 2019. Quer dizer, de ontem, de anteontem, de agora mesmo, de hoje-amanhã. E é nessa curta defasagem de um ano que vamos acompanhar as desventuras do escritor, suas dúvidas, suas dívidas, seus impasses, mulher, mulheres, filho. Como pano de fundo, um Rio onde “Essa Gente” passa pelo diabo, quer dizer, por onde nem sempre o diabo quer passar.

Entrecortado por entretítulos relativamente curtos, de pouco mais de uma página, às vezes nem isso, a partir das datas que situam a narrativa, “Essa Gente” é de leitura fácil e envolvente. Fácil em termos, pois Duarte/Buarque tem a escrita fina e afinada e de repente saltam do texto coisas como “A fim de emagrecer, começou um tratamento com enzimas, e me pergunta se notei que está falando em rimas”. E, logo à frente: “Como na época do nosso namoro, ela se diverte, saltita, ri que ri, faz trocadilhos, me desafia com palíndromos assim: sonsa Maria Clara vê: de varal caíram asnos”.

Quando Duarte sai a perambular pelas ladeiras do Leblon para tentar jogar fora o revólver — que sua ex-mulher Maria Clara, suicida em potencial, guardava — a narrativa, impregnada da mais pura realidade, capta o desvario, a raiva ensandecida, o ódio, a violência que assola um Rio (um país?) assomado por armas e mendacidade:

“Na calçada estreita e escura, sigo meu caminho com o revólver na mão, sem perigo de topar com pedestres a esta hora da madrugada. Sinto-me invisível até que o segurança da casa do cônsul japonês me saúda:

— É isso aí, mestre! Tem que acabar com a raça desses bandidos!

O vozeirão ecoa, e logo surgem vultos nas janelas, gente que ergue o polegar e aclama:

— Estamos juntos, guerreiro! Contamos contigo, campeão!”

Mas logo depois Duarte “dormia, dormia noite e dia, sonhava com o presidente da República, só tinha sonhos mórbidos”.

O sim e o desagrado

O Chico de fina estampa surge assim como quem não quer nada, jogando erudição quando em carta para um dos editores cita um dos poemas do “poeta mais caro” dele (do editor ou dele mesmo, Duarte?), aquela “faca só lâmina” de João Cabral (in “A Willy Lewin, morto”): “você ainda é o fantasma de quem busco o sim e o desagrado”. Na verdade, a estrofe que fecha o metapoema cabralino é “foste ainda o fantasma/ que prelê o que faço/ e de quem busco tanto/ o sim e o desagrado”. Mas, bom leitor, Chico sacou dela o essencial, a palo seco.

Pausa para um pequeno orgulho: em 1988, João Cabral me autografou da seguinte forma o seu “Museu de Tudo e depois” (onde se encontra o poema para Willy Lewin): “Para Ronaldo Werneck, poeta de Cataguases, terra de tantos poetas, o abraço de João Cabral de Melo Neto”.

De repente, Chico faz uma observação cortante, como se Duarte falasse dos cacoetes do telejornalismo da GloboNews & adjacências:

“— Por que na praia?”

O rábula adota a velha retórica doutoral de fazer pergunta a si mesmo, tendo as respostas na ponta da língua:

— Porque nossos telefones estão grampeados…”

Parece coisa déjá-vu, artifícios dos nossos telejornais, ou aquele macete recorrente quando o âncora faz uma pergunta com a resposta já embutida sobre qualquer assunto e o repórter abre a sua resposta com aquele esperado “exatamente, fulano/a…”.

Dívidas ou ofensas?

Há horas em que me vejo nas indagações de Duarte, quando observa: “Perdoai as nossas dívidas assim como nós… Através da precária caixa de som, a voz lamentosa do padre parece me corrigir: perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido. Mudou o padre-nosso, mudou a liturgia, mas todas as igrejas que conheço têm desde sempre o mesmo cheiro”.

Bingo! Minha irmã Rosa que é catequista e, se tivesse nascido Ronaldo, seria com certeza o pároco de Cataguases, me diz que agora é assim mesmo que reza o padre-nosso de meus tempos de coroinha da igreja-matriz de Santa Rita. “Perdoai as nossas dívidas, perdoai nossos devedores”? Isso não se faz, devem ter reclamado banqueiros e agiotas. E deu no que Deus. E Deus dará: E não vou me indignar e chega.

Zelo de mãe

Espero não estar dando spoiler, essa palavrinha incensada, que viralizou na mídia — e nada mais é que uma extensão das famosas dicas criadas por minha amiga, a poeta Olga Savary, no “Pasquim” dos anos 60. Mas eis que lá pelas tantas, filosofa Chico Duarte: “Com certeza minha literatura seria outra se, em vez de gastar sola de sapato por caminhos já trilhados, eu permanecesse imóvel feito um boneco, a observar o movimento das ondas, o mar encarneirado, jubartes, golfinhos, a agitação na praia sob o sol outonal. Seria quase como se, ao invés de impor minha escrita ao papel, eu visse o papel deslizar sob a ponta de meus dedos”.

O papel deslizar sob a ponta de meus dedos: o livro tem muito desses insights, que saltam súbito das entrelinhas, assim como quem não quer nada. Ou coisas como “deslizando bolhas alfabéticas que não tardo a decifrar”. E Chico Duarte se emociona e nos comove nessa cena onde vê o filho adormecido antes mesmo do terceiro verso de “Manhã, tão bonita manhã/ Na vida uma nova canção” que cantava para ele: “Ainda escuto umas ligeiras batidas de funk, e só então percebo os fones, que retiro de seus ouvidos com zelo de mãe. Reprimo a vontade de passar os dedos entre seus cabelos, como mamãe passava entre os meus, igualmente encaracolados: meu filho”. Esse “meu filho”, como diria Drummond, bota a gente comovido pra diabo.

Até aqui, meu Chico preferido era o de “Budapeste”. Agora, “Essa Gente” perambula comigo. E aí, gente, vocês ainda não leram “Essa Gente?”

Ronaldo Werneck é escritor.