Cheiro de Biblioteca, de Salatiel Correia, revela um ensaísta agudo e preciso nas análises
15 setembro 2024 às 00h00
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Marina Teixeira da Silva Canedo
Especial para o Jornal Opção
Ter o poder de sintetizar ideias, pensamentos e textos é uma característica não comum a todos os escritores, mas específica de alguns. O poder de síntese requer a captação dos sentidos mais profundos e importantes daquilo que se quer comunicar.
O Haicai, uma forma de poema condensado, esquemático, com apenas três versos, dois em redondilha menor e um em redondilha maior, é um exemplo de sintetização poética, exercitado na literatura japonesa e adotado pelos poetas minimalistas.
Outra forma enxuta de se fazer poesia é o soneto (que literalmente significa “pequeno som”), que procura conter a informação poética dentro de quatorze versos, muito bem estruturados, segundo as normas da métrica, do ritmo e da rima, tendo no último verso a chave de ouro. Devido à estrutura fixa do soneto, que inclui dois quartetos e dois tercetos, em versos decassílabos ou alexandrinos, os poetas modernos optam pelo verso livre, que lhes dá mais liberdade criativa e menos trabalho na construção dos mesmos. Mas a beleza dos sonetos é ímpar, e podemos dar graças a Petrarca (1304-1374) pela fórmula exemplar, aperfeiçoada por ele, e utilizada in saecula saeculorum (há dúvidas sobre o futuro). Dito isto, constata-se que a arte literária de se fazer obras curtas e intensas não é fácil, pelo contrário, exige uma condensação correta e necessária. Muitas vezes menos é mais.
Isto acontece também na prosa. Na narrativa prosaica existe, além do miniconto, a resenha, descritiva e crítica, que é um texto curto, que transmite o conteúdo e opiniões contidos em um livro ou em textos menores, de forma resumida.
No ensaio literário o escritor exerce, de maneira efetiva, a liberdade de exprimir suas impressões pessoais, críticas e avaliações sobre assuntos variados. Há escritores que exercitam esta habilidade de forma precisa, oferecendo aos leitores a concisão de suas avaliações. É o caso do engenheiro e respeitado escritor Salatiel Pedrosa Soares Correia, em seu livro “Cheiro de Biblioteca – obras e personagens que influenciam nossa época” (Birô ex Machina, 2015, 373 pág.). Esta obra foi prefaciada pelo jornalista Rodrigo Polito, do jornal Valor Econômico, que tem com Salatiel Correia estreita relação, devido a afinidades literárias e ao tema de interesse comum aos dois, que é o setor elétrico.
Este livro, “Cheiro de Biblioteca”, contém ensaios sobre trinta e dois livros, divididos em três partes: Política e Economia, Biografias Comentadas e Literatura. Representa o trabalho de um leitor voraz, que é Salatiel Correia, insaciável em sua sede de conhecimento. O ganho dos leitores é enorme, pois adquirem, em apenas quase quatrocentas páginas, informações contidas em trinta e dois longos livros. Em época de muita informação, em que o tempo se torna curto para absorvê-las, ler este livro é um verdadeiro prêmio para o leitor.
O autor consegue a façanha de opinar sobre os melhores livros a respeito dos assuntos tratados, escritos por autores de renome nacional e internacional, todos devidamente selados pelo sucesso, conferido pela crítica e pela multidão de leitores. São grandes best-sellers. Salatiel enriquece seus escritos ao acrescentar-lhes o molho de sua visão caleidoscópica, embasada em seu considerável conhecimento sobre política, economia e literatura, tornando a obra mais substanciosa. Neste caso são releituras, pois passam pelas lentes multifacetadas do autor, o que abrilhanta e amplia o entendimento dos temas tratados.
Quanto ao conteúdo da obra, é o mais eclético possível. O primeiro livro analisado é “Sobre a China”, de Henry Kissinger, autor que dispensa comentários; é notadamente grande conhecedor do assunto. Kissinger viajou à China mais de cinquenta vezes como secretário de Estado, e iniciou a construção do diálogo entre EUA e China, com excelentes resultados. Em seguida é analisado “O Mundo Muçulmano”, de Peter Dermant, renomado historiador holandês, especializado em questões do Oriente Médio. Neste livro fica evidente o choque de culturas que acontece entre o Ocidente e o Oriente Médio, tendo a religião islâmica como o grande divisor de águas.
Seguem-se oito livros, na primeira parte, entre os quais o de Francisco Doratioto, brasileiro, doutor em História, sobre a Guerra do Paraguai. Foi resultado de quinze anos de intensa pesquisa sobre a insanidade desse conflito, provocado pela insensatez de Solano López. A gestação do Plano Real, as discrepâncias entre as nações desenvolvidas e subdesenvolvidas, a globalização e seus efeitos, são temas de livros comentados pelo autor, Salatiel Correia.
A segunda parte é dedicada aos ensaios sobre biografias famosas. Grandes personalidades desfilam nesse contexto. Entre os brasileiros estão Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Getúlio Vargas, João Goulart, Osvaldo Aranha e Juscelino Kubitschek. Entre os estrangeiros figuram Barack Obama, Abraham Lincoln, Franklin Delano Roosevelt, Winston Churchill, Yasser Arafat, Raúl Prebisch, Joseph Alois Schumpeter, Albert Einstein e Gabriel Garcia Márquez.
Para ilustrar a excelência dos escritores biógrafos, cito apenas o biógrafo de Gabriel Garcia Márquez (1927=2014), Gerald Martin, inglês, o mais conceituado biógrafo do notável escritor. Profundo conhecedor da América Latina (viajou por todos os países da região), professor na Universidade de Pittsburgh, conheceu todos os lugares onde viveu o famoso Gabo. Foram dezessete anos de intensa pesquisa para compor 814 páginas da importante e séria biografia. Um trabalho de peso.
Salatiel fecha com chave de ouro seu livro enciclopédico pois, na terceira e última parte, apresenta cinco ensaios sobre obras que marcaram a cultura ocidental, com destaque para a latino-americana. Esses ensaios foram brilhantemente elaborados, deixando em evidência sua erudição. Três obras de Mario Vargas Llosa são objetos de seu estudo: “A Festa do Bode”, “O Sonho do Celta” e “A Civilização do Espetáculo”. Dedica-se também a “O Leopardo”, romance sobre a decadência da aristocracia siciliana no período do Risorgimento, de Tomasi di Lampedusa (1896-1957), escritor italiano, que não pode ver o sucesso de sua obra seminal.
Ao final, sob o título de “A Solidão de um Continente”, o autor se notabiliza ao expor suas reflexões a respeito do romance que deu a Gabriel Garcia Márquez o Prêmio Nobel de Literatura: “Cem Anos de Solidão”. O genial escritor traça o perfil da América Latina com suas “especificidades”, contadas, como diz Salatiel, através do Realismo Mágico que, muitas vezes, representa a loucura da própria realidade pela qual passaram as sociedades latino-americanas, nas quais o culto a personalidades políticas se tornou anômalo, esdrúxulo e doentio.
“Cheiro de Biblioteca” é um título interessante e que faz jus ao conteúdo do livro: trinta e dois livros em um só. Ao lê-lo, tem-se a sensação de estar dentro de uma minibiblioteca, desfrutando do prazer da leitura. Jorge Luis Borges, quando já tomado pela cegueira, ia às bibliotecas para se conectar com os livros, nem que fosse somente através de seu aroma, tão próprio e reconhecível e que dá, ao leitor apaixonado, uma sensação de aconchego familiar.
Marina Teixeira da Silva Canedo é crítica literária e cronista. É colaboradora do Jornal Opção.