Chá de Gim retrata em nova música mazelas de um Severino que luta por sobrevivência na cidade
26 novembro 2019 às 19h24

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Ao se inspirar no poema “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto, banda goiana narra a trama sofrida de um morador de rua condenado a uma vida injusta
“E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).”Trecho do poema “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto, publicado em 1955
Quando a banda goiana Chá de Gim lançou seu disco de estreia, “Comunhão” (2015), um ano depois de sua formação, o público dos festivais e show da cidade conheceram a mistura das regionalidades e tradições do povo brasileiro nas letras, com grande influência da música nordestina, do rock progressivo e da MPB.
Da poesia do cordel entrelaçada com a sofrida vida de quem se aventurou para construir novos rumos para o Brasil ao desbravar o Centro-Oeste, que traz na sua identidade o bandeirante paulista e mineiro, os indígenas, famílias tradicionais que herdaram e grilaram terras no interior do País e que agora se juntam a um novo fluxo migratório, daqueles que saem do Norte e Nordeste em busca de oportunidade.
“Comunhão” vem da força das letras, principalmente do vocalista Diego Wander, que ganham interpretações apaixonadas e com forte peso teatral. A guitarra de Caramuru Brandão marca a melodia sofrida e alegre do povo brasileiro, das mais diversas localidades, que se encontrou em Goiás. O baixo de Bernardo Rodrigues se une à bateria de Alexandre Ferreira para não deixar o tempo se perder em uma realidade de encanto, poesia e dor.
Depois do álbum que coloca a Chá de Gim em diferentes palcos do Estado, como nos festivais Juriti, Cidade Rock, Vaca Amarela, Canto da Primavera e na abertura do Bananada de 2019, vieram as músicas “Canção do Futuro” e “Preto Velho”, essa com a participação do Cocada Coral e do produtor musical, cantor, compositor e gestor Carlos Brandão. Mas a canção lançada na sexta-feira, 22, mostra um novo rumo na história de cinco anos da banda.
“Severino” ganha uma cadência sofrida de blues misturada com o impacto emotivo do pop rock e da MPB bem acompanhados pela ilustração de Hal Wildson e a animação de William Louro. O nome do personagem que dá vida à letra é aquele do poema de 1955 de João Cabral de Melo Neto, o retirante nordestino que se arrasta do sertão para sobreviver. Se não morrer no meio do caminho por algum infortúnio ou por desnutrição.

De “Morte e Vida Severina” até “Severino”, o personagem ganha uma versão urbana, mas não menos sofrida e fidedigna. Com ajuda da ilustração de Hal Wildson, o vídeo da letra faz surgir um catador de papel encarregado de carregar muito além do material reciclável para tentar tirar dali um dinheiro para comer. O peso de suportar o mundo nas costas fica seco e doloroso pelo destino de ver que “papel não é cobertor, mas vira“.
A letra declama em tom sofrido a rotina do Severino da cidade grande, que se entrega à sorte que lhe sobra. Ou o azar. “Não como da saudade/Eu tenho fome do agora.” Os versos narram a necessidade de buscar algo para nutrir o personagem para que ele suporte “o que há de vir“. Mas a dor desse Severino da realidade cruel encontra uma razão, se é que se pode chamar assim, no som da cidade, que é sujo, mas inspira.
A primeira amostra do novo disco, no qual a Chá de Gim conta trabalha junto com Lucas Castro, o Lucão, do Taj Mahouse Studio Pub, Lugh Senderson e o Awen Studio, mostra a dedicação de buscar a melhor formatação para as novas canções. Tanto que o vocal de “Severino” passou por uma segunda gravação antes de chegar nas mãos de Senderson para a mixagem.
Os versos revelam um sofrimento do Severino morador de rua, que veio do Norte e do Nordeste em grande parte dos casos da população desassistida. “Corre sempre seco, fino e certo Severino/Desde os tempos de menino ele aprendeu a oiá/Viu que o mundo todo tá ruindo e que o céu tá caindo.” A vida dura, desde a infância roubada pela necessidade do senso de sobrevivência, não tira a capacidade de sonhar com um futuro melhor: “Mas se o chão se abrir/Ele aprende a voar“.
Aí é quando todo sonho alto demais se destroça com a realidade batendo à cara. “Mas eu não/Só que não.” É então que entra o solo a se arrastar na melancolia da dor do retirante que hoje é um condenado à desilusão das ruas, mas que prefere manter uma esperança de ter dias mais alegres. E o sofrimento ganha ainda mais representação no teclado de Wellington de Melo.
Quanto mais a música evolui, mais distante e pequeno fica Severino, representado pelo catador de papel a carregar seu carrinho em uma imensidão que o torna cada vez mais insignificante. A música se encerra com um coro, que é doce e ao mesmo tempo cruel, e revela imagens que quase nunca se concretizam na vida dos muitos Severinos.