Ao se inspirar no poema “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto, banda goiana narra a trama sofrida de um morador de rua condenado a uma vida injusta

“E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).”

Trecho do poema “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto, publicado em 1955

Quando a banda goiana Chá de Gim lançou seu disco de estreia, “Comunhão” (2015), um ano depois de sua formação, o público dos festivais e show da cidade conheceram a mistura das regionalidades e tradições do povo brasileiro nas letras, com grande influência da música nordestina, do rock progressivo e da MPB.

Da poesia do cordel entrelaçada com a sofrida vida de quem se aventurou para construir novos rumos para o Brasil ao desbravar o Centro-Oeste, que traz na sua identidade o bandeirante paulista e mineiro, os indígenas, famílias tradicionais que herdaram e grilaram terras no interior do País e que agora se juntam a um novo fluxo migratório, daqueles que saem do Norte e Nordeste em busca de oportunidade.

“Comunhão” vem da força das letras, principalmente do vocalista Diego Wander, que ganham interpretações apaixonadas e com forte peso teatral. A guitarra de Caramuru Brandão marca a melodia sofrida e alegre do povo brasileiro, das mais diversas localidades, que se encontrou em Goiás. O baixo de Bernardo Rodrigues se une à bateria de Alexandre Ferreira para não deixar o tempo se perder em uma realidade de encanto, poesia e dor.

Depois do álbum que coloca a Chá de Gim em diferentes palcos do Estado, como nos festivais Juriti, Cidade Rock, Vaca Amarela, Canto da Primavera e na abertura do Bananada de 2019, vieram as músicas “Canção do Futuro” e “Preto Velho”, essa com a participação do Cocada Coral e do produtor musical, cantor, compositor e gestor Carlos Brandão. Mas a canção lançada na sexta-feira, 22, mostra um novo rumo na história de cinco anos da banda.

“Severino” ganha uma cadência sofrida de blues misturada com o impacto emotivo do pop rock e da MPB bem acompanhados pela ilustração de Hal Wildson e a animação de William Louro. O nome do personagem que dá vida à letra é aquele do poema de 1955 de João Cabral de Melo Neto, o retirante nordestino que se arrasta do sertão para sobreviver. Se não morrer no meio do caminho por algum infortúnio ou por desnutrição.

Chá de Gim traz Severino, personagem de João Cabral de Melo Neto, para onde o retirante quando deixou o Nordeste atrás de uma chance na vida | Foto: Otávio Morato

De “Morte e Vida Severina” até “Severino”, o personagem ganha uma versão urbana, mas não menos sofrida e fidedigna. Com ajuda da ilustração de Hal Wildson, o vídeo da letra faz surgir um catador de papel encarregado de carregar muito além do material reciclável para tentar tirar dali um dinheiro para comer. O peso de suportar o mundo nas costas fica seco e doloroso pelo destino de ver que “papel não é cobertor, mas vira“.

A letra declama em tom sofrido a rotina do Severino da cidade grande, que se entrega à sorte que lhe sobra. Ou o azar. “Não como da saudade/Eu tenho fome do agora.” Os versos narram a necessidade de buscar algo para nutrir o personagem para que ele suporte “o que há de vir“. Mas a dor desse Severino da realidade cruel encontra uma razão, se é que se pode chamar assim, no som da cidade, que é sujo, mas inspira.

A primeira amostra do novo disco, no qual a Chá de Gim conta trabalha junto com Lucas Castro, o Lucão, do Taj Mahouse Studio Pub, Lugh Senderson e o Awen Studio, mostra a dedicação de buscar a melhor formatação para as novas canções. Tanto que o vocal de “Severino” passou por uma segunda gravação antes de chegar nas mãos de Senderson para a mixagem.

Os versos revelam um sofrimento do Severino morador de rua, que veio do Norte e do Nordeste em grande parte dos casos da população desassistida. “Corre sempre seco, fino e certo Severino/Desde os tempos de menino ele aprendeu a oiá/Viu que o mundo todo tá ruindo e que o céu tá caindo.” A vida dura, desde a infância roubada pela necessidade do senso de sobrevivência, não tira a capacidade de sonhar com um futuro melhor: “Mas se o chão se abrir/Ele aprende a voar“.

Aí é quando todo sonho alto demais se destroça com a realidade batendo à cara. “Mas eu não/Só que não.” É então que entra o solo a se arrastar na melancolia da dor do retirante que hoje é um condenado à desilusão das ruas, mas que prefere manter uma esperança de ter dias mais alegres. E o sofrimento ganha ainda mais representação no teclado de Wellington de Melo.

Quanto mais a música evolui, mais distante e pequeno fica Severino, representado pelo catador de papel a carregar seu carrinho em uma imensidão que o torna cada vez mais insignificante. A música se encerra com um coro, que é doce e ao mesmo tempo cruel, e revela imagens que quase nunca se concretizam na vida dos muitos Severinos.