Em vez de reconhecer nas miniaturas de Kharms metáforas da vida, o que se pode ver na peça de Fayad, que continua diferentemente o movimento do literato soviético, não são metáforas, mas, sim, símbolos do absurdo

Atores Saulo Dallago, Guerhard Sullivan, Leopoldo Rodri­guez e Edimar Pereira em cena de “Cerimônia paras personagens estranhos: Miniaturas Grotescas”, de Marcos Fayad |Foto: Corália Elias/Divulgação

Thiago Cazarim
Especial para o Jornal Opção

Nos dias 06 e 07 de abril, pude assistir ao espetáculo “Cerimônia para personagens estranhos – Miniaturas Grotescas”, adaptação de histórias curtas do autor russo Daniil Kharms (1905-1942), feita pelo diretor teatral Marcos Fayad. Não sendo dramaturgo, nem crítico, nem conhecedor da obra de Kharms, penso então no excelente espetáculo levado a público no Teatro Sesc Centro em Goiânia como espectador impactado pelo desconhecido.

[relacionadas artigos=” 90907 “]

A alcunha “literatura do absurdo”, emprestada por este jornal à produção de Kharms, fornece uma pista interessante para os espectadores que se aventuraram pelo trabalho de Fayad. Como o próprio diretor afirmou em entrevista (link ao lado) ao Jornal Opção, tratam-se de 18 histórias fugazes que, pelo insistente emprego de uma estruturação inacabada, produzem a sensação de estranheza e de incompatibilidade com o fluxo ordinário da vida. Não é à toa que, no início do espetáculo, logo após a saída dos atores do palco (aliás, o lógico não seria que o espetáculo começasse pelo vazio do espaço?), o público ouve uma voz que avisa que o teatro nada mais é que o cotidiano ao qual se deu outro uso. Algo por si só estranho, já que o limite entre arte e vida comum normalmente é visto como rigidamente marcado e impermeável.

Ao mesmo tempo, o espectador desavisado poderia esperar no palco um absurdo estereotipado, como no caso de Um cão andaluz e A idade de ouro, ambos do cineasta Luís Buñuel. Para ficar na comparação com o cinema de Buñuel, talvez o espetáculo de Marcos Fayad tenha encontrado em Daniil Kahrms aquele absurdo mais sutil, tanto quanto mais paradoxal, de O anjo exterminador, em que não é a mera sequência de disparates que confere o teor de absurdo, mas sim a constatação de que por dentro do convencional, da vida repetitiva é que o absurdo aparece e se dissipa sem maiores explicações. Nada extraordinário, então; ou ao menos nada não-ordinário serve para explicar o absurdo visceral do cotidiano.

As Miniaturas Grotescas, quando levadas ao palco, trabalham com o jogo do ordinário sobre si mesmo: as falas retas, o cenário clean, o elenco reduzido, os temas aparentemente sem sentido ou profundidade – nada aponta para o exagero e o choque como categorias dramáticas prioritárias. Seria possível até, se quisermos, reduzir a apreciação do espetáculo, por um lado, aos quadriláteros e círculos que compõem tanto o cenário (quadraturas: o número de atores, o formato do pequeno palco vermelho, o painel retangular ao fundo, as duas kalimbas tocadas brevemente pelos atores, as cadeiras coloridas, a caixa posta sobre a cabeça em que cabem igualmente a morte e a vida) e, por outro, às circularidades de paralelismos internos à estrutura do texto (o trocadilho “sem tirar nem pôr”, que ironiza o recém-nascido tirado e posto de volta dentro de sua mãe, reaparece mais três vezes ao longo do espetáculo com sentidos bastante diferentes).

Para o espectador, talvez a melhor forma de captar o sutil absurdo de Cerimônia para personagens estranhos seria atentar para o caso de Nikolai Ivanovich. Nesta cena, aparecem condensados todos os paradoxos do espetáculo de Fayad. Nikolai Ivanovich, homem apático, cercado de outros homens que narram suas ações e descrevem sua personalidade. Nikolai Ivanovich, presente em cena, mas incapaz de atuar por si, dependente de outros que lhe deem significado. E, numa espécie de sofística revisitada, não se trata de discutir o caráter de Ivanovich, mas apenas de dizer da vodca que ele bebeu – ou não bebeu. Os narradores começam a desfazer todo grau de certeza que pode haver sobre a existência da personagem narrada num crescendo de absurdo. Primeiro, abolem a existência do espaço em torno de Nikolai Ivanovitch: não existe nada, nem mesmo um espaço vazio, atrás, aos lados nem à frente dele. (Este não é o espaço do teatro, afinal?) Em seguida, afirmam que não há nada dentro de Ivanovitch; mais que isso: que nem mesmo existe Ivanovitch. Só existe a garrafa de vodca, mesmo que não se possa negar ou afirmar que ela tenha cumprido seu desígnio etílico…

A cena de Nikolai Ivanovitch, por sua vez, parece formar um arco com o início da peça, quando uma sequência de ações sem sentido aparente se realiza antes de qualquer diálogo. Após marcharem um percurso retangular, os atores, cada um portando um objeto diferente, detêm-se ao fundo do palco e desenvolvem três gestos. O primeiro ator abre um compasso, circulando-o pelo palco. O segundo sucede-o com um pequeno laser no traçado invisível do compasso, em que é acompanhado pela iluminação que forma um anel de luz sobre o palco. O terceiro, portando um aspirador de pó, coloca-o em funcionamento seguindo pela borda do anel luminoso que progressivamente vai se borrando até formar um foco de luz sem contorno. A cena de Nikolai Ivanovitch é apenas o ritornelo dessa cena inicial que anuncia que a distância entre o palco e o espectador, o ordinário e o absurdo, esteve sempre condenada a desaparecer.

Diretor Marcos Fayad | Foto: Corália Elias/Divulgação

O absurdo então se multiplica. Afirma-se diante do público que o próprio público não existe, que a personagem diante do público (inexistente) não existe, que a personagem nada contém que não o seu vazio, que o momento comum da vida e o tempo especial do teatro não se diferenciam senão por um acidente. Mais forte que isso tudo, o absurdo reside em usar o teatro para dizer que o teatro não existe. Isso não soa apenas absurdo a quem assiste o espetáculo: esta auto-sabotagem parece ser uma completa mentira. Porém, neste movimento de abortar a própria possibilidade, talvez a peça de Fayad enuncie uma verdade incômoda. Nada havendo no exterior ou no interior de uma personagem levada à cena, resta apenas a indelével presença do absurdo que nenhuma racionalização ou negação podem controlar.

Uma solução fácil seria recair no niilismo como opção de vida: nenhuma solução possível. Outra saída para o paradoxo de Nikolai Ivanovitch e as demais personagens estranhas seria, seguindo a pista do próprio Fayad, reconhecer o absurdo como metáfora da realidade. Em outros termos, seria reintroduzir o absurdo do cotidiano no fluxo ordinário dos fatos históricos – uma opção certamente coerente com o contexto histórico de Daniil Kharms e da repressão stalinista. Mas a visão do autor sobre sua obra sempre é parcial já que a obra ultrapassa o gesto e o autor que a compõem. Por isso, em vez de reconhecer nas miniaturas de Kharms metáforas da vida, o que se pode ver na peça de Fayad, que continua diferentemente o movimento do literato soviético, não são metáforas, mas, sim, símbolos do absurdo.

[relacionadas artigos=” 91443 “]

Símbolo, em sua acepção mais corrente, diz sobre aquilo que representa ou substitui algo. Nesse sentido, uma metáfora pode se comportar como um símbolo e se torna impossível distingui-los. Porém, símbolo, do verbo grego symballein, remete mais originalmente ao objeto dividido em dois (symbollon), entregue a diferentes emissários ou portadores de uma mensagem que, para serem reconhecidos e fazerem valer sua verdade, apresentavam as metades do objeto então partido. A bela leitura que Michel Foucault faz do “Édipo Rei” de Sófocles na década de 1970 (O saber de Édipo; A verdade e as formas jurídicas) recupera este sentido mais antigo do “simbolizar”: a busca da verdade por Édipo, construída num procedimento de symbollon, é precisamente o domínio daquilo que divide e reúne, que afasta e coloca frente a frente, que busca a verdade por meio da suspeita. Símbolo é, à diferença da metáfora como substituta, o confronto direto com a verdade que se custa a captar. Diante do irresistível absurdo de Kharms-Fayad, o que resta senão enfrentar de cara limpa o absurdo de um teatro que arruína sua verdade ao mesmo tempo que faz dessa impossibilidade sua condição?

Se há uma metáfora possível, algo a extrair desse buraco-negro do pensamento, quem sabe não é a ideia de que o absurdo do cotidiano reside na impossibilidade de o cotidiano se sustentar sozinho sem aquilo que o nega – o extraordinário? Entre a impossibilidade do teatro e a impossibilidade do cotidiano, o absurdo talvez seja a força edipiana que os divida e coloque permanentemente em confronto. O absurdo, pois, como símbolo do teatro e da vida.

Thiago Cazarim é bacharel em música e mestre em filosofia.