Carlos Augusto Silva 

Especial para o Jornal Opção

O ano de 2024 marca o centenário do nascimento de Osman Lins, um dos grandes mestres da literatura brasileira, cuja obra resplandece com uma singularidade que transcende épocas e modismos. Nascido em 5 de julho de 1924, em Vitória de Santo Antão, Pernambuco, Osman Lins delineou com suas palavras um universo único, onde realidade e ficção se entrelaçam em uma dança literária intricada e fascinante.

Osman Lins começou sua trajetória literária com romances que exploravam os labirintos da mente e da alma humana. Obras como “Avalovara” e “A Rainha dos Cárceres da Grécia” não apenas inovaram a narrativa, mas também desafiaram os leitores a mergulharem em estruturas textuais complexas, repletas de simbolismos e múltiplas camadas interpretativas. “Avalovara”, em particular, se destaca como um marco experimental, um romance que se constrói e se reconstrói em um palíndromo narrativo, onde o tempo e o espaço se desdobram e se reconfiguram a cada página.

Osman Lins foi um autor que ousou, que não temeu o risco do desconhecido. Sua obra, por vezes, foi incompreendida ou considerada hermética, mas é justamente nesse mistério que reside sua beleza e profundidade. Ele desafiava os limites da linguagem, criando uma literatura que exige do leitor não apenas a compreensão, mas a vivência, a imersão total em suas narrativas.

Além de suas inovações formais, a literatura de Lins é marcada por uma profunda reflexão sobre o Brasil e suas contradições. Em “Nove, Novena”, suas narrativas curtas resgatam a memória coletiva, explorando o cotidiano e a cultura popular com uma sensibilidade aguda e crítica. Lins era um observador atento das transformações sociais, políticas e culturais do país, e sua obra reflete essa inquietação com um olhar sempre renovado e pertinente.

Neste centenário, a obra de Osman Lins se mostra mais atual do que nunca. Em um mundo onde a velocidade da informação muitas vezes impede a profundidade da reflexão, seus escritos convidam à pausa, ao mergulho lento e cuidadoso nas palavras. Lins nos lembra da importância da literatura como espaço de questionamento e descoberta, um lugar onde podemos nos perder e nos encontrar, onde o tempo ganha novas dimensões e significados.

Celebrar os 100 anos de Osman Lins é celebrar a coragem de um escritor que não se acomodou, que buscou incessantemente novas formas de expressão e que nos legou uma obra rica, complexa e inesgotável. É reconhecer o valor de uma literatura que nos desafia e nos transforma, que nos convida a olhar o mundo com outros olhos, a ver além do óbvio, a encontrar a poesia no caos.

Que este centenário seja um convite para redescobrir Osman Lins, para reler suas obras com o mesmo espírito aventureiro com que ele as escreveu, e para celebrar a perenidade de uma literatura que, mesmo após 100 anos, continua a nos iluminar com sua força e originalidade.

No mergulho à obra de Osman Lins, é impossível não destacar dois de seus romances mais emblemáticos: “Avalovara” e “A Rainha dos Cárceres da Grécia”. Essas obras são pilares que sustentam a monumentalidade literária do autor, cada uma oferecendo uma experiência estética e intelectual profundamente rica e singular.

Avalovara

Publicado em 1973, “Avalovara” é frequentemente considerado o ápice da ousadia experimental de Osman Lins. A estrutura da narrativa é baseada em um palíndromo latino, “Sator Arepo Tenet Opera Rotas”, e no desenho de uma espiral, elementos que Osman Lins utiliza para criar um romance que desafia as convenções literárias tradicionais.

O romance é uma viagem através de tempos e espaços múltiplos, interligando histórias e personagens em uma teia complexa. Cada um dos oito capítulos principais corresponde a uma letra do palíndromo, e a espiral que desenha a narrativa permite que as histórias se cruzem e se conectem de maneiras surpreendentes. Em “Avalovara”, a forma é tão importante quanto o conteúdo, e o leitor é convidado a decifrar a obra como se fosse um enigma literário.

O enredo envolve Abel, um escritor, e suas experiências amorosas com três mulheres: Annelise, Cecilia e Julia. Essas relações são exploradas em diversas camadas de realidade e ficção, que se desdobram e se entrelaçam ao longo da narrativa. A escrita de Osman Lins, aqui, é repleta de simbolismos e metáforas, criando uma experiência de leitura que é ao mesmo tempo desafiadora e recompensadora. “Avalovara” não é um livro para ser lido passivamente; é um convite à participação ativa, à interpretação, à descoberta.

A Rainha dos Cárceres da Grécia

Publicado em 1976, “A Rainha dos Cárceres da Grécia” é um romance que combina elementos de ficção, autobiografia e ensaio, resultando em uma obra profundamente introspectiva e crítica. O romance se passa em um presídio feminino e é narrado por uma mulher chamada Sofia, que se encontra encarcerada por motivos políticos.

Através de suas cartas a uma amiga chamada Maria, Sofia relata suas experiências no cárcere, suas reflexões sobre a condição humana e sua resistência intelectual e espiritual frente à opressão. A narrativa de Sofia é um mosaico de vozes e histórias que se entrelaçam, refletindo sobre temas como liberdade, identidade, e a força da palavra escrita como instrumento de resistência.

A obra é uma poderosa crítica ao autoritarismo e à repressão, não apenas política, mas também social e cultural. Osman Lins constrói uma narrativa que é ao mesmo tempo pessoal e universal, usando a experiência de Sofia para explorar questões mais amplas sobre o poder, a justiça e a dignidade humana. A rainha dos cárceres da Grécia, a personagem mítica mencionada no título, simboliza a esperança e a resiliência diante da adversidade.

Ambos os romances exemplificam a maestria de Osman Lins em criar obras que transcendem o mero entretenimento, oferecendo ao leitor uma profundidade de reflexão raramente encontrada na literatura contemporânea. “Avalovara” e “A Rainha dos Cárceres da Grécia” são testemunhos do compromisso de Osman Lins com uma literatura que não se contenta com o óbvio, que busca incessantemente novas formas de expressão e que desafia o leitor a pensar, sentir e, sobretudo, questionar.

Osman Lins: um dos mais inventivos escritores brasileiros e um ensaísta do primeiro time; ele viveu apenas 54 anos anos, mas deixou uma obra densa | Foto: Reprodução

Ao celebrar o centenário de Osman Lins, é essencial reconhecer a relevância contínua de sua obra. Seus romances não são apenas artefatos do passado, mas sim textos vivos, pulsantes, que continuam a dialogar com os leitores de hoje, oferecendo novas perspectivas e insights sobre a condição humana e o mundo ao nosso redor. Ler Osman Lins é embarcar em uma jornada de descoberta, um convite a explorar os recônditos mais profundos da alma humana e a vastidão ilimitada da imaginação literária.

Carlos Augusto Silva, crítico literário, é também professor de Literatura e História da Arte. Bacharel em literatura pela UFG, licenciado em História e Língua Portuguesa pela Unijales-SP, especialista em História e Estética da Arte pelo Masp, mestre em Estudos Linguísticos e Literários pela UFG, doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP. Autor dos livros “Dicionário Proust”, “Opção Crítica” e “Proust e a História”. É colaborador do Jornal Opção.