Simone Athayde

Especial para o Jornal Opção

“O mundo estará fodido de vez quando os homens viajarem de primeira classe e a literatura no vagão de carga.” — Gabriel García Márquez em “Cem Anos de Solidão”

“Cem Anos de Solidão”, lançado em 1967, talvez seja um dos livros mais conhecidos, traduzidos e aclamados de todos os tempos. Seu autor, o colombiano Gabriel José García Márquez (1927-2014), conquistou o Prêmio Nobel de Literatura em 1982 e um lugar de destaque no Olimpo das Letras, reafirmando ao mundo a força e a criatividade da literatura latino-americana. A obra acompanha sete gerações dos Buendía através de um século de histórias familiares que se mesclam às mudanças da cidade em que habitam, a telúrica Macondo.

O romance, um clássico do Realismo Mágico, é uma espécie de épico do absurdo, pois a todo momento situações e personagens bizarros ou sobrenaturais acontecem, coisas fantásticas e fantasiosas se sucedem como se fossem naturais. O estilo de escrita de Márquez, aparentemente simples na forma, é poético, rico em adjetivações e leva a esse enredo intricado e irreverente, que ora faz rir e ora só não escandaliza devido à elegância do autor.

Por ser uma verdadeira “enciclopédia do imaginário” (expressão acertada de Rinaldo Gama) e devido às diversas camadas de leitura que essa obra possibilita, fica difícil imaginar uma adaptação audiovisual que consiga captar todas essas nuances sem descambar para o mau gosto ou para uma simplificação empobrecedora do original. Pensando no lançamento da série homônima da Netflix, com lançamento marcado para o dia 11 de dezembro, parece ser uma boa hora para recordar alguns aspectos do livro.

Para começar, “Cem Anos de Solidão” tem um dos inícios mais populares da literatura mundial. Em poucas linhas, consegue despertar a curiosidade e exibe o talento do autor: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo. Todos os anos, pelo mês de março, uma família de ciganos esfarrapados plantava a sua tenda perto da aldeia e, com um grande alvoroço de apitos e tambores, dava a conhecer os novos inventos.”

Gabriel García Márquez: escritor colombiano que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura | Foto: Reprodução

É também no início que somos apresentados a alguns elementos norteadores da obra: o primeiro casal da família Buendía formado pelos primos José Arcádio Buendía e Ursula Iguarán; o parentesco, o que causa em Úrsula o medo de que tenham filhos com “rabo de porco” e será uma espécie de maldição que atravessará as gerações; o personagem Melquíades, um cigano que encantará José Arcádio com suas invenções e que, de certa forma, dará início ao universo maravilhoso na história. A partir do contato com Melquíades, Arcádio desenvolverá uma “desaforada imaginação”, tornando-se de homem diligente a uma espécie de “maluco beleza”, em contraponto com a incansável vontade de trabalho de sua mulher, que viverá, por mais de cem anos, na missão de manter “uma família de loucos” de pé.

Pouco depois, conheceremos os filhos, José Arcádio, o primogênito, e Aureliano. E ao longo da história, todos os descendentes homens terão os mesmos nomes desses dois e os mesmos traços físicos e de caráter, pois enquanto os José Arcadio são extrovertidos e extravagantes, os Aurelianos são introvertidos, sérios e estudiosos. Haverá uma exceção, mas será explicada com a irreverência que o autor fornece ao seu texto. A intricada árvore genealógica dificulta a vida do leitor, que pela metade do livro já não se lembra mais com certeza quem é quem na história, e pode ser vista, sob o aspecto simbólico, como um movimento do pêndulo: a vida é cíclica e todos daquela família acabam repetindo uma sina solitária, conforme o trecho constata: “”Não havia nenhum mistério no coração de um Buendía que fosse impenetrável para ela, porque um século de cartas e de experiência lhe ensinara que a história da família era uma engrenagem de repetições irreparáveis, uma roda giratória que continuaria dando voltas até a eternidade, se não fosse pelo desgaste progressivo e irremediável do eixo”.

Macondo, a cidadezinha onde se passam as histórias, como vimos no trecho inicial retirado da obra, é inicialmente um canto tão isolado do mundo que a certa altura José Arcádio afirma que “estamos cercados de água por todos os lados”. Porém, a mítica cidade vai deixando-se infiltrar pelo mundo externo, por suas invenções e uma quantidade imensa de personagens que chegam e vão embora das mais diversas maneiras, cada qual com um pouco de loucura. Macondo vai se modificando num ritmo tardio, mas irrevogável em relações às exigências do mundo criado por Marques e no qual a casa dos Buendía é o ponto central, apogeu e declínio, alfa e ômega, por vezes destruída e renovada. Os mais estranhos acontecimentos fazem parte do cotidiano da cidade e, em consequência, da casa e de seus habitantes: pragas de insônia, de esquecimento e de formigas, um dilúvio que dura anos, chacinas, guerras, febre de fertilidade entre os animais, bordéis e farras homéricas, fantasmas que estão tão vivos quanto os vivos.

O exagero perpassa os elementos do texto narrativo em Cem anos de solidão (o tempo, o espaço, os personagens e o enredo). O que destoa desse exagero é a figura do narrador onisciente, muito tradicional na literatura. Ao criar esse universo fantástico, o autor entrou na galeria dos chamados demiurgos, ou criadores de mundos, tal qual Tolkien em O senhor dos Anéis, e Huxley em Admirável Mundo Novo. A fonte inspiradora de toda complexidade, no entanto, parece ter sido bastante simples: as histórias familiares e aquelas de sua avó materna que “contava os episódios mais fantásticos sem alterar um só traço do rosto”.

García Márquez, Jorge Edwards, Vargas Llosa, Carmen Balcells, José Donoso e Ricardo Muñoz Suay | Foto: Reprodução

Os Buendía e a história da América Latina

Laura Janina Hosiasson, professora da USP e estudiosa da literatura latino-americana, diz sobre “Cem Anos de Solidão”: “Em suas múltiplas camadas de leitura, é possível vislumbrar uma ideia do mundo em suas mais diversas dimensões: históricas, sociais, políticas, psicológicas, ontológicas… Numa primeira aproximação, é possível percebê-lo em seu nível alegórico. Cada uma das muitíssimas micro-histórias nele contidas, cada um dos dramas vivenciados pelos seres que giram em volta da saga familiar dos Buendía, remete à evolução de uma história maior, a história da América Latina. Uma das formas interessantes dessa pegada alegórica está na relação entre crendice, superstição e poder. Bem lido, o livro fala da força dos poderosos cimentada sobre modos de manipulação da credulidade e da crendice dos oprimidos”.

Também de um ponto de vista alegórico, a história de Macondo pode ser lida como a passagem de uma vida em comunidade, com sua simplicidade e companheirismo, para o capitalismo, com todas as implicações que essa mudança acarreta. No começo, os habitantes de Macondo, seguindo as orientações do fundador José Arcádio Buendia, vivem em situação de igualdade: as casas estão dispostas todas à mesma distância da fonte de água, os terrenos são de tamanhos iguais, não há desigualdade social. Depois, ao perceber que o marido está sempre tentando correr atrás de ilusões, Úrsula, com sua “febre empreendedora” começa um pequeno negócio culinário que se transforma numa padaria de sucesso e, com isso, reforma a casa e a enche de móveis e enfeites de luxo, fazendo com que se destoe das demais casas. Ao mesmo tempo em que prospera, Úrsula não tem mais tempo de cuidar dos filhos, que acabam largados, o que não deixa de simbolizar a realidade de mulheres trabalhadoras no sistema capitalista. O golpe final na utopia implantada por José Arcádio é realizado pelo filho homônimo, que começa a tomar a terra dos vizinhos de forma violenta.

Outra leitura subjacente à obra é que, na história de Macondo, podemos ver a história da exploração da América Latina, primeiro pelo colonialismo Europeu e depois pelo Imperialismo americano. É exemplar o episódio da companhia bananeira americana que se instala em Macondo de forma amigável e depois se mostra maligna ao escravizar a mão de obra nativa, manipular a verdade e matar os trabalhadores e suas famílias. Esse episódio foi baseado num evento real, o Massacre das Bananeiras, o assassinato de trabalhadores da United Fruit Company ocorrido em 1928 na cidade natal do autor, Aracataca. Representantes da empresa apontaram uma greve dos trabalhadores por melhores condições de trabalho como “comunista”; a partir disso os EUA ameaçaram invadir a Colômbia com sua marinha se o governo do país não agisse para proteger os interesses da empresa. Como consequência, o presidente conservador Miguel Mendéz enviou o exército colombiano para acabar com a greve, matando os trabalhadores.

Outro aspecto que podemos pontuar é a dualidade que aparece na personalidade dos personagens. Amaranta, perdidamente apaixonada, será aquela que não se deixará ser amada. Fernanda, a personagem mais pia e religiosa, é também aquela de coração mais duro. Seu filho José Arcádio, criado para ser Papa, vive uma vida de esbórnia e excessos. Aureliano, filho do primeiro casal, é pacífico e conservador, mas diante de uma ordem governamental que percebe como autoritária, inicia uma revolução que acaba descambando para a mesma violência do governo.

A violência, por sinal, também é um dos temas da obra, seja nas inúmeras guerras, fuzilamentos e extermínios que são narrados, seja na violência simbólica, nos desvios sexuais e na prostituição como forma de sobrevivência. Mesmo que algumas partes da obra possam contê-la, a narrativa quase alucinante e a irreverência e elegância presentes nela servem como contraponto.

A influência desse livro para as gerações seguintes foi inegável. O realismo mágico de Gabo e sua fórmula para produzi-lo passaram a ser o objeto de desejo de muitos escritores, de modo que é possível ver algo de “Cem Anos de Solidão” em outras obras sem o mesmo charme do original, visto que o elemento novidade foi se perdendo com o tempo. Ainda assim, continua sendo uma obra de muito fôlego, que se sustenta do começo ao fim e que ainda poderá agradar aos leitores da atualidade. Restará descobrirmos se a série homônima da Netflix também será capaz de nos surpreender positivamente.

Simone Athayde, escritora e crítica literária, é colaboradora do Jornal Opção.