Guilherme Mapelli Venturi

Especial para o Jornal Opção

Quem lê uma resenha ou uma crítica sobre um livro, um filme, um disco, ou qualquer outro produto cultural e/ou artístico, não imagina o quão complexo e delicado é o ofício do intermediador que a produz. Primeiro é preciso entender quem é o crítico e qual o seu papel; em termos comparativos, ele pode ser considerado um comentarista, um juiz.

Esse profissional geralmente tem formação em Letras ou Jornalismo, e sua atividade é, de modo mais superficial, ter contato com a obra (seja ela qual for) e tornar público suas impressões; mas não bastam comentários simplistas e totalmente pessoais, pois é obrigatório que haja uma análise mais aprofundada, ou seja, que se destaque os aspectos positivos e negativos da obra. Em outras palavras, o crítico deve dizer no que o autor acertou e no que errou, o que ele poderia melhorar, o que ele poderia ter feito e não fez.

Além disso, há várias modalidades de crítica: as que focalizam apenas o texto, as que focalizam apenas o autor; as que abordam o contexto psicanalítico, marxista, impressionista, entre outras. Às vezes há uma mistura de modalidades, ou em outras, o crítico impõe mais um estilo próprio do que a adoção de um modelo específico.

Como você já deve imaginar — e corretamente —, o crítico acaba sendo uma ponte entre o autor e o leitor, portanto, está falando com e para esses dois interlocutores; razão pela qual se originam os “problemas” da profissão, principalmente o receio em desagradar o autor com o texto.

Evidentemente, a crítica é uma prática sensível, pois entre suas tantas finalidades, ela acaba servindo de “propaganda” da obra, positiva ou negativamente. Mas deixemos, por ora, este e outros assuntos a ela relacionados de lado, para falar um pouco sobre o papel do autor.

Em primeiro lugar, o escritor precisa definir duas questões fundamentais: quem será seu público-alvo e qual será sua intenção com a obra. Depois, e não menos importante — talvez até mais — o autor deve dominar as teorias e técnicas narrativas (arcos dramáticos, clímax, desfecho; evolução, mudanças e conflitos, tanto do personagem quanto entre os personagens; diálogos, coesão e coerência em toda a história…).

Desse modo, obviamente nenhum escritor, por mais habilidoso que seja e por mais tempo de carreira que tenha, consegue excelência em todos esses aspectos; pelo contrário, em alguns casos se dá preferência para o enredo e para os personagens; em outros, para a arquitetura, para a construção da obra (incluindo inovações ou recursos pouco utilizados). É o que ocorre com “Cavalo de Terra”, de Otavio Linhares.

O único romance de Otavio Linhares, “Cavalo de Terra” (2021) — antes publicou uma novela intitulada “Pancrácio” (2013), contos intitulados “O Esculpidor de Nuvens” (2015) e mais contos intitulados “O Cão Mentecapto” (2017) —, logo com o título não explicado pela história, já a galope, traz o primeiro enigma ao leitor.

O viés narrativo de Linhares é mais experimental do que histórico, pois o foco nos personagens, em todas suas relações e no enredo, passa a centrar-se nos elementos teóricos da prosa (linguagem, pontuação, narradores, etc.).

Se por um lado, o texto sem parágrafos, sem vírgulas, sem travessões e sem verbos discendi — às vezes, algumas pequenas estrofes entre um trecho e outro, e alguns pontos finais — dificulta a leitura; por outro, a história e os conflitos familiares — em doses homeopáticas ao decorrer da leitura — prende a atenção pela maneira com a qual o autor conseguiu “misturar” os acontecimentos e pela desordem temporal.

cadê teu irmão?! a mãe entra no sótão correndo.  tá bem nervosa. cadê teu irmão?! ela olha ao redor e não encontra o tomás. eu sei que é o tómas. quer dizer. só pode ser o tomás. ninguém corre atrás do João. O joão tá sempre no lugar certo na hora certa. besta. desço atrás dela. a mãe tá parada na porta olhando pra fora. me embrenho por debaixo do seu braço e consigo ver um carro preto arrancando. (pg. 64)

O narrador — se de fato for apenas um — é outro elemento que em vários momentos confunde o leitor, afinal, ora está em primeira pessoa, ora em terceira; ou ainda, em páginas avulsas, tem-se a impressão de não ser a voz do personagem principal.

cuide do seu irmão. ele precisa de você. cresci ouvindo meu pai repetir isso pro joão e pro tomás. (pg. 126)

Quando menos se espera, o narrador corta uma linha de raciocínio para contar uma passagem pretérita – a chamada digressão – embaralhando a mente do leitor e mostrando o domínio do autor na utilização das técnicas prosaicas.

os bombeiros que vieram e PLAW! estufaram a porta do apartamento da velha e aí veio um cheiro bizarro parecido com o cheiro do quarto do vô só que bem mais forte e aí sai! sai! sai! mandaram todo mundo sair. ninguém viu nada. só o pacotão preto com o corpo da velha dentro saindo do prédio. ela deve ter virado sopa nesse tempo todo. a porta do elevador abre. vazio. entro. aperto o térreo. o elevador desce. essa parte é chata então vou voltar lá pra cima pra falar do pablo. ele é um piá legal. ele sabe fazer malabarismos com três limões e sabe empinar a bike e andar de uma roda por uma quadra inteira e sabe assoviar de cinco jeitos diferentes e faz um negócio com a sobrancelha que ninguém consegue. (pg. 33)

Apesar do estilo próprio de Otavio e dos obstáculos narrativos enfrentados pelo leitor, é indispensável lembrar-se do enredo; de forma sintética, a família do personagem principal passa pela mesma tragédia, em diferentes momentos e de formas variadas, de modo que as consequências, as responsabilidades e toda a gestão, não apenas de sua própria vida, mas também dos outros familiares, recai sobre o protagonista chegando à adolescência; e consequentemente, a imaturidade, a solidão, as dúvidas, os erros, as perdas, as dificuldades, as contradições, as responsabilidades.

Nesse contexto, um irmão mais velho (besta, narcisista, morando com os pais e fazendo medicina); um irmão do meio (alienado, que usa, furta e vende drogas, e mora com um amigo); uma vó que gosta mais de cães do que de pessoas; um vó acamado, com câncer, boa pessoa, perfeccionista e cuidadoso; um pai vendedor autônomo, alcoólatra, cego de um olho e uma perna amputada; uma irmã adotada ainda bebê e levada por uma assistente social, dão forma a uma ficção muito mais real do que fantástica, pois apesar de um pouco exagerado, tudo o que acontece com cada um dos envolvidos, é perfeitamente possível; ainda mais em um século em que o mais inimaginável e mais absurdo acontece.

O postulado tanto é verdade que após se masturbar, um dos personagens começa a ter alucinações, as quais poderiam ser constatações reais, afinal representam as dicotomias da vida humana e a verossimilhança com uma relação a dois.

Anoto esse pensamento. PLÈC! aaahhh!!! merda!!! que dor!!! a pelinha rompe feito um elástico de borracha e um pouco de sangue escorre pela mão e pernas. começa a doer mais e mais. olho no espelho e fica tudo embaçado de novo. entendi. quanto mais pressão na cabeça mais fácil de ver as coisas. deito no chão. o corpo treme um pouco de dor. e de prazer. é uma sensação boa essa dorzinha que dá. sinto o alívio de ter cumprido uma missão. se o pai tivesse aqui eu ia ter orgulho de contar pra ele que agora tenho um pau de adulto. penso. só que é mentira. queria ser esse piá que se orgulha dessas coisas, igual o joão que tinha o peito inflado de pombo cheio de gurias escoradas passando a mão nele só que tenho vergonha de contar até pro espelho o que acabou de acontecer. imagina pro meu pai. hahaha! ainda bem que a vó sempre tinha uns remédios pra essas coisas de rasgar cortar esfolar. passo o remédio na ferida. boto minha roupa e sento na cama. abro o caderno de capa vermelha. anoto. prazer e dor prazer e dor prazer e dor…

Agora, findadas as considerações sobre o enredo, e novamente, tomado pela voz do crítico, se houvesse menos repetição de palavras e ideias; se algumas das falas e das ações de outros personagens não fosse descritas pelo narrador, mas sim, pelos próprios praticantes; se houvesse economia de páginas inteiras numeradas, e também em páginas seguidas com a mesma frase escrita; se não houvesse páginas em branco no meio de um dos capítulos; talvez, para muitos leitores, a obra ficaria mais fácil e agradável. Mas é necessário cuidado extremo, pois se de um lado, alguns têm essa impressão; outros, não. Além disso, se lá estão, devem estar; afinal nada é planejado e feito em vão pelo autor e por toda a equipe editorial. Cada detalhe tem um motivo e ligação com algo ou alguém, ajudando a montar o quebra-cabeça narrativo e expressando o estilo do autor.

Pois bem, sem mais delongas, se chegou até aqui é sinal de que se interessou pelo romance e, certamente, ficará ainda mais com as indagações a seguir (talvez sejam spoilers)!!

Os capítulos são desconexos? Há dois narradores que se revezam por toda a obra? O narrador é o espólio de um dos personagens? O narrador é a irmã de um dos personagens, ou quem sabe algum amigo? O final da história termina com a morte de alguém e deixa muitas questões sem respostas? Qual fim levou o caderno com tantas páginas sequenciais numeradas? Mais do que isso, o que era esse caderno? Esse enigma foi esquecido em decorrência de outro? Qual a explicação para o título?

Apesar de todas as explanações aqui listadas e de o livro não se aprofundar tanto no psicológico e na transformação dos personagens, se eu fosse você, não deixaria de lê-lo; afinal, mais do que trazer importantes temáticas, ele retrata a vida (passada, presente e futura) de uma família, principalmente de um garoto entrando na adolescência, o qual já se vê obrigado a assumir grandes responsabilidades e a lidar com realidades nada fáceis. Mais do que leitura e respostas, a obra trará constatações, diferentes perspectivas, inquietações, provocações; fazendo-lhe refletir sobre a brevidade, sobre a complexidade e sobre os imprevistos existenciais, mostrando que sempre haverá alguém em situação pior.

Guilherme Mapelli Venturi é licenciado em Letras, pós-graduado em língua e literatura, graduando em biblioteconomia e ciência da informação, escritor, revisor, diagramador, resenhista.