A casa de Vinicius de Moraes na web: uma metáfora e uma poética
31 outubro 2015 às 11h51
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À disposição de qualquer leitor, a vasta produção literária do Poetinha se encontra numa casa digital, o site de Vinicius
Gismair Martins Teixeira
Especial para o Jornal Opção
Nos capítulos iniciais da primeira parte da obra “Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil”, Thomas Hobbes investe contra o discurso dos escolásticos tradicionais, que teriam na retórica de Tertuliano, um dos Pais da Igreja no século 2 –– a quem é atribuída a clássica proposição credo quia absurdum (creio porque é absurdo) ––, uma orientação discursiva repleta de asserções absurdas, mesmo que as intenções iniciais do famoso apologista cristão tivessem conotações metafísicas, assim como as de seus continuadores.
Ao enumerar as causas de tais assertivas, sete no total, Hobbes aponta como a sexta motivação principal do absurdo o uso de metáforas no lugar de palavras próprias, denotativas. Não deixa de ser curioso, em face da estrutura de sua obra, pois o título de seu tratado pode ser configurado como uma macrometáfora, que por sua vez remete de forma interdiscursiva a outra metáfora grandiosa, “Cidade de Deus”, de Santo Agostinho, que é célebre na literatura de fundação do Cristianismo, e que dialoga em “Leviatã” com o eclesiástico de seu subtítulo e de sua discursividade, além das correspondências física e metafísica na estruturação estatal e civil presente em ambas as obras.
Contudo, o que seria defeito no âmbito do pensamento hobbesiano se converte em virtude no reino da poética literária, aqui entendida conforme a distinção estabelecida por Emil Staiger em “Conceitos fundamentais da poética”, que a caracteriza como a produção literária em geral, em que se situa naturalmente a poesia. É o caso, dentre muitos outros, da poética de Vinicius de Moraes e a sua vasta produção literária em diversos gêneros e mídias, dentre as quais se destaca atualmente a plataforma digital, com a hospedagem de site específico que contém todo o material do escritor à disposição de qualquer pesquisador, professor, ou mesmo do leitor amante da poesia, das crônicas, dos romances, da peça teatral ou das músicas do artista nascido no bairro do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, em 1913.
A própria Internet, em sua conceituação de rede, aparece como um tipo particular de metáfora que se correlaciona a outras. Termos como navegar, sítios, ou seu correlato inglês, hospedagem, internet profunda, ou deep web, dentre outros, remetem a esta polissemia metafórica que guarda afinidades instigantes com a literariedade referenciada por Roman Jacobson. Um exemplo radical e bem à mão dessa possibilidade correlacional é a denominada ciberliteratura. Mas existem diversos outros.
Metáfora profética e várias fases
Quem visitar o site www.viniciusdemoraes.com.br encontrará à disposição todo o material produzido por Vinicius de Moraes, além de uma linha do tempo descrevendo parte significativa da trajetória tanto intelectual quanto de vida do poeta. O pesquisador se sentirá como um arqueólogo que de repente tivesse acesso franqueado a um sítio arqueológico repleto de informações de sua ciência. Na aba intitulada Poesia, o internauta terá acesso aos livros que enfeixam os poemas de Vinicius de Moraes com históricos paratextuais à Genette que antecedem a cada edição, apresentando elementos como prefácios, comentários do próprio autor, informações sobre poemas que migraram para coletâneas etc.
Quem selecionar a obra “A arca de Noé”, por exemplo, saberá que este livro de poesias infantis foi composto de poemas que o autor escrevia para seus filhos anos antes de publicá-lo em 1970. Exatamente uma década depois, a Rede Globo de Televisão produziu um musical com base nesta obra, convidando importantes intérpretes da MPB para cantarem os versos escritos por Vinicius de Moraes. O resultado foi tão expressivo que o especial “Vinicius para criança” ganhou, dentre outros prêmios, o Grammy de 1981, competindo com 110 programas do gênero produzidos em 22 países.
É de “A arca de Noé”, por exemplo, um poema extremamente lúdico que serve como uma curiosa metáfora profética e tecnológica para o site que hospeda todo o material sobre o autor. Em “A casa”, poesia que fecha a obra, escreveu Vinicius de Moraes para o deleite do imaginário de crianças e adultos: “Era uma casa/Muito engraçada/Não tinha teto/Não tinha nada/Ninguém podia/Entrar nela não/Porque na casa/Não tinha chão/Ninguém podia/Dormir na rede/Porque a casa/Não tinha parede/Ninguém podia/Fazer pipi/Porque penico/Não tinha ali/Mas era feita/Com muito esmero/Na Rua dos Bobos/Número Zero”.
Definida no “Dicionário Michaelis On-line” como sendo o “emprego de uma palavra em sentido diferente do próprio por analogia ou semelhança”, o poema “A casa” pode ser pensado como uma instigante metáfora que transpõe a casa física para o espaço da virtualidade. Naturalmente, não foi a intenção de Vinicius de Moraes, mas funciona. Daí a riqueza desse recurso retórico que sobreviveu à caducidade da retórica clássica, conforme aponta o célebre estudo de Paul Ricouer intitulado “A metáfora viva”.
Ao adentrar nessa casa metafórica, o leitor encontrará mais que o Vinicius de Moraes dos livros didáticos dos ensinos de literatura, que o apresentam como um representante da Segunda Geração Modernista, catalogada dos anos 30 do século passado até os anos 45, quando tem início a Terceira Geração Modernista. Didaticamente, a sua poética é dividida em duas fases. A primeira delas é classificada como mística; a segunda é classificada como erótica. Seu livro de estreia, “O caminho para a distância” (1933), além de “Forma e exegese” (1935) e “Ariana, a mulher” (1936) são representantes do primeiro momento na poética do escritor. O livro seguinte, “Novos poemas” (1938), e os que se seguem, à exceção de “Arca de Noé”, representam o segundo momento na poética moraesiana.
Embora “Novos poemas” já apresente em seu título a transição definitiva do sagrado ao profano, chama a atenção o fato de que estas fases não representam necessariamente uma cisão absoluta, como ressalta da atenta leitura da poesia que compõe o conjunto das obras do poeta. Em outras palavras, significa que tanto na poética profana quanto na poética erótica de Vinicius de Moraes podem ser encontrados elementos justapostos de uma e de outra nos seus versos. Em poemas da primeira fase já se nota o preparo para a fase seguinte. E em poemas da segunda fase se nota também reminiscências da fase anterior. De permeio, tem-se ainda o Vinicius lúdico e o poeta do social, como em “Arca de Noé” e em poemas como “O operário em construção”, do volume “Novos Poemas II”, de 1959.
A propósito, “O operário em construção” se configura como uma boa amostragem da interseção de fases de Vinicius de Moraes. Bem na linha ideológica marx-engelsiana do “proletários de todos os países, uni-vos”, o poema funciona num crescendo à bolero de Ravel que conduz a uma epifania do operário que se descobre como o grande artífice de tudo quanto pode gerar riqueza. Ao melhor estilo panfletário, “O operário em construção” apresenta uma deificação do operariado em contraposição a uma literal demonização patronal. Não é à toa que o então líder sindical e ex-operário Luís Inácio Lula da Silva convidou o autor para declamá-lo em reunião sindicalista do nascente Partido dos Trabalhadores nos idos de 1979 como está registrado na casa virtual de Vinicius de Moraes na web.
A sobreposição de fases, neste caso emblemático, dá-se quando o poeta utiliza como epígrafe e mote de todo o poema a passagem do quinto capítulo do Evangelho de Lucas, quando Satanás leva Jesus a um monte e lhe apresenta todos os reinos do mundo, prometendo dá-los ao Salvador sob a condição de sua subserviência. Numa paráfrase poética bem construída, o patrão de Vinicius de Moraes promete dar ao operário todas as regalias se ele deixasse de dizer “não”, como passara a fazer, e continuasse servil como fora em tempos de ignorância pré-sindical.
Resta somente imaginar o que diria o poeta, hoje, diante da colossal crise ética institucional de representações políticas que pretensamente defenderiam os trabalhadores. No poema, o operário resiste à tentação. Se estivesse vivo, talvez Vinicius de Moraes compusesse uma paráfrase faustiana, mostrando o operário que é tentado e que sucumbe fragorosamente. É, portanto, uma retórica poética mística de braços dados com o campo ideológico que nega esta metafísica de fundo cristã por meio de cristalizações ideológicas ao estilo “a religião é o ópio do povo”.
Diversos outros exemplos do entrecruzamento dessas fases seriam pinçáveis ao conjunto da poética de Vinicius de Moraes em sua casa virtual no ciberespaço. E, possivelmente, todos eles apontariam na direção de um etos poético em estreita sintonia com a proposição do ex-sacerdote católico e místico brasileiro, Huberto Rodhen, quando afirma em seus escritos que “a mística é a erótica do espírito, assim como a erótica é a mística da carne”. Por mais que isto pudesse desagradar a Thomas Hobbes, esta assertiva nada tem de absurda e pode ser vista como a metáfora ideal da poética de uma vida literária intensa, que remete, ainda, ao etos do homem barroco da contrarreforma, dividido entre o sagrado e o profano, como já apontaram estudiosos da poética do escritor carioca.
Gismair Martins Teixeira é doutor em Literatura pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e professor-pesquisador do Centro de Estudo e Pesquisa Ciranda da Arte da Secretaria de Estado de Educação, Cultura e Esporte de Goiás (Seduce-GO).