Cartografia sentimental e literária da Capital Mineira, um retrato de BH
24 outubro 2015 às 10h57
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Com fotografias de João Marcos Rosa, o livro de Fabrício Marques mapeia a gênese de uma cidade que é cenário e celeiro cultural e artístico
“Belo Horizonte é o mar onde desaguam
rios de gente mineira, uns com
mais ouro, outros com mais ferro, este
cristalino, aquele turvo. A cidade de 3
milhões de habitantes não tem idade
para ter feito tantos filhos, adotou a
maioria deles. É na capital que se faz a
mistura, é onde se obtém o mineiro que
o brasileiro conhece geralmente como
mineiro, é onde o mineiro regional torna-
-se mineiro estadual.” –
“Belos Horizontes”,
de Ivan Angelo
Ronaldo Cagiano
Especial para o Jornal Opção
Realizando um trabalho de fôlego, intitulado “Uma cidade se inventa –– Belo Horizonte na visão de seus escritores”, o jornalista, poeta e crítico Fabrício Marques fez uma profunda incursão, ao mesmo tempo literária e afetiva, na vida literária e social de Belo Horizonte, a partir do olhar e dos depoimentos de vários escritores sobre suas relações com a cidade. O livro conta com precioso material iconográfico capturado pelas lentes de João Marcos Rosa, que vem de uma larga carreia de repórter fotográfico documentando a cultura e a biodiversidade brasileiras.
A obra, com o costumeiro capricho gráfico e esmero artístico da Editora Scriptum, mapeia entre autores de poesia e ficção, a gênese de uma cidade que, desde a fundação, foi cenário e celeiro de movimentos culturais em suas diversas vertentes e linguagens artísticas. Nesse panorama, vamos encontrar uma geração de ouro da história intelectual brasileira; muitos deles deixaram Minas para pontificar em outros centros de efervescência cultural e literária, como Rio e São Paulo, entre os quais Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Pedro Nava, Murilo Mendes, Cyro dos Anjos, Helio Pellegrino, Abgar Renault, Autran Dourado, Paulo Mendes Campos, Aníbal Machado, Alphonsus de Guimaraens Filho, Darcy Ribeiro, Guilhermino Cesar e tantos outros.
Entre a invenção e a memória, o autor coligou depoimentos, alinhou fatos, reproduziu experiências criativas de oitenta entrevistados, entre aqueles que nasceram ou se radicaram na cidade, os que ali vivem ou viveram e que deram fundamental contribuição à formação da identidade cultural mineira e a esse potencial berço de celebridades não apenas literárias, mas também da vida política nacional.
Guiacurus Caetés Goitacazes
Tupinambás Aimorés
Todos no chão
Guajajaras Tamoios Tapuias
Todos Timbiras Tupis
Todos no chão
A parede das ruas
Não devolveu
Os abismos que se rolou
Horizonte perdido no meio da selva
Cresceu o arraial
“Ruas da Cidade”,
Lô e Márcio Borges
Percebe-se no decorrer desse caudaloso e sensível inventário, seja nas entrevistas ou testemunhos, a influência da cidade e de seus ambientes míticos (redações de jornais, bares, encontros, livrarias, points, edifícios, eventos e bate-papos) experiência pessoal e criativa desses autores, circunstâncias que vão além das amizades e da fidelidade ao cenário, à vida, aos acontecimentos e certa psicologia belo-horizontina. É, sobretudo, a apreensão de variados fatores e idiossincrasias determinantes na construção desse relicário pessoal (ou identidade) mineiro na obra e na construção dos próprios personagens, numa geografia de sutilezas e detalhes que vão compondo um riquíssimo painel, não apenas bibliográfico, mas imagético e humano dessa polifônica, multifária e modernista capital das Gerais.
Como constata Ivan Ângelo, para explicitar e definir o caráter expansivo, receptivo, heterogêneo e cosmopolita da cidade, “Belo Horizonte é o mar onde deságuam rios de gente mineira, uns com mais ouro, outros com mais ferro, este cristalino, aquele turvo” e que consolida o espírito do livro, verdadeiro espelho desta que não é apenas uma, mas tantas outras numa só capital. A BH do Edifício Maletta e da Avenida Afonso Pena, da Pampulha e do Mercado Central, do Mineirão e dos bares e livrarias da Savassi, da Praça da Liberdade e do córrego Arrudas, do Clube da Esquina e do Suplemento Literário de Minas Gerais (SLMG); a cidade de autores que há pouco tempo partiram, tais como Duílio Gomes, Wander Piroli, Bartolomeu Campos de Queirós, Afonso Ávila e Garcia de Paiva; e de tantos outros que a contaram, cantaram e a definiram em seus versos e périplos narrativos o labirinto sensorial de uma metrópole.
Babel babilônica de vozes, corpos, livros e sentidos, coreografia que marca todo um itinerário de inquietações de uma metrópole que cresce, corre e não se exaure naquilo que só a linguagem artística é capaz de revelar, essa antologia de textos sentimentais, mas povoados de intensa literatura, confirma o que já nos revelara o autor de “Grande Sertão: Veredas”, para quem em Minas há pelo menos várias e BH funciona como receptáculo de valores, costumes e tradições do caleidoscópico território social e humano, representado na híbrida produção literária que Fabrício Marques nos revela ao abrir o espólio de um passado tão recente dessa capital já tão emp(r)enhada de histórias para (e por) contar.
“Uma cidade se inventa”, mais que registro, roteiro lírico e testemunho geracional, é obra que desvela a alma e instaura uma declaração de amor a Belo Horizonte, transcendendo a mera configuração urbana. Vai além, para firmar-se como documento imprescindível para estudo, pesquisa e prazer estético nessa possibilidade de releitura da cidade a partir de seus escritores-protagonistas, com a herança semântica da memória e o sentido metafórico e escrutinador de todos os tempos e vidas de uma cidade de apenas 117 anos.
Ronaldo Cagiano vive em São Paulo e é autor de “Dicionário de Pequenas Solidões” (Contos, Editora Língua Geral) e, dentre outros, “O Sol nas Feridas” (Poesia, Dobra Editorial).