“Capitão Fantástico” mostra como é difícil viver em sociedade sem tentar aniquilar uns aos outros

22 janeiro 2017 às 13h25

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Filme de Matt Ross coloca à prova a capacidade que cada indivíduo tem de pertencer a uma sociedade cada vez mais heterogênea sem tornar inválida a existência alheia

Capitão Fantástico (2016) é um filme interessante. De cara, é possível dizer se trata de um filme de (e para) pais e filhos. Os pais choram ao final, revendo o tipo de educação que impuseram aos filhos até aqui, mas recordando também quanto amor esteve envolvido. E os filhos, embevecidos com o tipo de criação libertária que conhecem na tela, aspiram as habilidades quase super-humanas dos seis pequenos coadjuvantes.
Ben (que, ironicamente, lega a seus filhos o sobrenome “Cash”) carrega consigo fortes convicções ideológicas anti-estabilishment. Os valores familiares que propaga são “Power to the people! Stick it to the man!”, lemas populares de grupos socialistas, pacifistas, anarquistas e minorias em luta pelo reconhecimento de seus direitos nos anos 50 e 60. Seu profeta, Noam Chomsky (Jesus seria apenas um elfo mágico, fruto de mentes doentias).
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Carregando essas convicções ideológicas, com a cumplicidade da esposa (que aparece apenas como memória do protagonista ou como cadáver — e isso tem um papel fundamental no sentido do filme), dispensa aos filhos uma educação extremamente rígida, vivendo na selva, longe da civilização e das mazelas do mundo contemporâneo.
Mas enxergar o segundo longa de Matt Ross — antes, um pouco prolífico ator de Hollywood, mas agora, depois de faturar o prêmio de melhor direção na mostra “Un Certain Regard” em Cannes, diretor em ascensão — apenas como uma comédia romântica sobre educação infantil é pouco. O Capitão se propõe a discutir os caminhos do poder e seus custos individuais.
Quando William Golding escolheu crianças para protagonizar o seu “Senhor das Moscas”, em 1954, muito provavelmente queria utilizá-los como metáfora ao conceito de “estado de natureza”, aquele estado do indivíduo selvagem, ainda sem o compromisso de viver em sociedade. Os adultos do livro, todos mortos, simbolizariam as leis, o Sistema. E nesse contexto em que não existem regras pré-estabelecidas, sobreviver é o mote principal para qualquer decisão. Nessa condição natural, todos os homens são potencialmente iguais, e suas características diferenciadoras compensam-se. Na obra de Golding, o carisma de Ralph ou a inteligência de Porquinho eventualmente compensariam a força bruta e a austeridade de Jack. Como cada um utilizaria essas características para se manter vivo — o que inclui dominar a maioria e estabelecer um “reinado” — já é outra história.
O sangue e o ímpeto selvagem das imagens iniciais do filme nos levam equivocadamente a crer que a família de Ben vive a liberdade plena. O perfeito “estado de natureza”. Só que, ao contrário do que ocorre no “Senhor das Moscas”, existe um adulto ali infiltrado. Alguém que reina absoluto e impõe suas regras àquele pequeno grupo de pseudo-selvagens — regras como treinos de condicionamento físico pesados todos os dias, horário para leitura de clássicos, prática musical, agricultura de subsistência, defesa pessoal e até proibição de ficar nu perto de pessoas que estão comendo dão forma àquela micro sociedade. Não são selvagens. São membros de uma comunidade alternativa que renega o sistema, com todas as suas cocas-colas venenosas, celulares e videogames alienantes e cumprimentos simpaticamente hipócritas. “Stick it to the man”.
Mas a grande questão do filme está escondida nessas entrelinhas aí: o cara que governa essa comunidade não tem um Contrato Social prévio. “The Man”. O presidente nunca foi aclamado. E, como diria Rousseau, se a lei não é auto-imposta, a liberdade vira escravidão.
É bom perceber como Ross — que também escreveu o roteiro da obra — apresenta seu plano maligno. Primeiro, constrói a ideia de sistema perfeito. Depois, o desconstrói aos poucos, mostrando suas imperfeições e nos incutindo a desconfiança, inclusive expondo-o num embate com o sistema capitalista que todo mundo conhece. Essa desconfiança também contagia os filhos de Ben, “os súditos”. Surge o questionamento, seguido da indignação — nossa e dos moleques. Já dizia John Locke, o liberal, que quando o Estado quebra o pacto com os seus cidadãos, há motivo mais do que suficiente para a ruptura.
No decorrer das cenas, somos inevitavelmente levados a questões como “até que ponto a ordem é mais importante que a liberdade?”, “Qual o custo individual para se manter a ordem coletiva?”, “Os sacrifícios valem à pena?”. Se levarmos em consideração o tumultuado momento político pelo qual passamos, em que a legitimidade de um Presidente da República é questionada pela forma como ascendeu ao poder (no Brasil), ou o impacto que bandeiras polêmicas levantadas podem causar na coesão social (nos Estados Unidos), o filme toma uma profundidade ainda maior. E o protagonista sintetiza toda a angústia que surge no momento em que os anseios de um grupo se dissociam das convicções de quem o lidera — legítima ou ilegitimamente. Aliás, o que determina essa legitimidade? Em que momento surge, ou deixa de fazer efeito?
Capitão Fantástico, sem dúvidas, tece uma crítica irônica à sociedade de consumo e à forma como criamos nossas crianças nos dias de hoje. Mas seu grande mérito está em colocar à prova como cada um, individualmente, enfrentará os desafios de pertencer (ou não se sentir como parte) a uma sociedade cada vez mais heterogênea, onde cada um é obrigado a encontrar a melhor forma de sobreviver sem tentar, a todo custo, aniquilar “o outro”.
Pensando melhor, “interessante” é uma qualificação proibida para esse filme.
João Paulo Lopes Tito é advogado e estudante de Cinema e Audiovisual