Edmar Monteiro Filho

No dia 1º de maio de 1977, após mais de dez anos de estratégico resguardo, estudantes voltaram a sair em passeata pelas ruas da cidade de São Paulo, desafiando a polícia para reivindicar liberdades democráticas e anistia para os presos políticos. Desde a decretação do AI-5 não se via tamanha mobilização pública contra a ditadura.

Nessa época, eu era um estudante recém-chegado a São Paulo. Assistia às inflamadas assembleias estudantis como quem assiste a uma grande festa e confesso que as greves deflagradas importavam como oportunidade de voltar mais cedo para casa. Ainda ignorante e desinteressado dos movimentos políticos, a conscientização alcançou-me através da música que ouvia no Centro Acadêmico Pereira Barreto, da Escola Paulista de Medicina – hoje Unifesp –, onde estudei durante esse período em que o movimento estudantil voltava a se fortalecer e a ditadura militar fenecia. Era especialmente música latino-americana, interpretada por Quilapayún, Inti-Illimani, Raíces de América, Tarancón, Violeta Parra e Mercedes Sosa.

Pablo Neruda ao receber o Prêmio Nobel de Literatura em 1971 | Foto: Reprodução

Essas canções embalavam nossos sonhos de uma América Latina unida, progressista, justa, livre de seus caudilhos tão caricatos quanto cruéis. Eram tempos de colocar uma mochila surrada nas costas, tomar o chamado “Trem da Morte” e partir para a aventura de subir a Cordilheira dos Andes até Machu Picchu. Era também o auge do boom da literatura latino-americana, iniciado na década de 1960, representado Julio Cortázar, Carlos Fuentes, Juan Carlos Onetti, Mario Vargas Llosa, Alejo Carpentier e Gabriel García Márquez. Mas eram, especialmente, tempos de ler Pablo Neruda, poeta que viveu e cantou como poucos a identidade latino-americana.

No início dos anos 1970, Pablo Neruda, já fora agraciado com o prêmio Nobel de Literatura e sua poesia era conhecida e amada ao redor do mundo. Embora falassem também de amor e de temas cotidianos, seus versos refletiam uma atuação política voltada para as questões sociais. Um livro, em especial, era inspiração para nosso inconformismo: “Canto Geral” (Bertrand Brasil, 602 páginas, tradução de Paulo Mendes Campos), de 1950.

“E nascerá de novo esta palavra, / talvez em outro tempo sem dores / sem as impuras fibras que aderiram / negras vegetações em meu canto, / e outra vez nas alturas estará ardendo / meu coração queimante e estrelado”.

Escrito durante o exílio político do poeta, “Canto Geral” é um verdadeiro monumento literário, canto de amor à América e ao seu Chile natal. E como é minucioso e profundo esse amor!

Neruda inicia seu canto visitando a memória geológica do continente, faz um inventário de sua fauna e flora, para então apresentar sua gente. Desde esse ponto, alça voo por sobre a história humana, trazendo notas acerca da vida de personagens notáveis ou sobre a gente simples, homens e mulheres nomeados tão somente pela atenção generosa da poesia.

Nesse percurso histórico, traçado a partir de atenções pontuais, Neruda não esconde em momento algum sua intenção de mapear e denunciar a exploração e a violência de que foram vítimas os povos autóctones nas mãos do colonizador, bem como a população pobre e sem voz, esmagada pela opressão e pela miséria, uma vez estabelecidas as fronteiras nacionais no continente.

“Canto Geral” escancara os males que tingiram de dores as terras americanas, tão potentes em promessas e encantos. Elege ditadores desumanos, generais sanguinários, as grandes companhias estrangeiras, os traidores das causas populares como legítimos vilões desse longo drama. Do mesmo modo, celebra como heróis os que ousaram se insurgir contra a ganância de poderosos de toda estirpe e contra injustiça crônica, males que deitaram raízes por todo o solo da América Latina, inaugurando uma era de desigualdades e violência que perdura até nossos dias.

Manifesto político, crônica histórica, hino de louvor à coragem do povo americano, libelo acusatório, mas também poesia carregada de cores vívidas e apaixonadas: todo esforço para abarcar essa obra máxima de Neruda dentro de qualificativos exatos há de soar improfícuo. Cabe dizer que o poeta poderia figurar na galeria dos trágicos personagens que povoam as páginas de “Canto Geral”. Ferrenho opositor do ditador Augusto Pinochet, Neruda foi assassinado em Santiago em 1973. Seu cortejo fúnebre, acompanhado por milhares de pessoas que desafiaram o toque de recolher, imposto pelos militares, tornou-se um gigantesco ato de protesto contra a ditadura chilena. E se ainda pairar alguma dúvida acerca desse crime, jamais reconhecido oficialmente, basta perguntar a qualquer dos estudantes que frequentaram o saudoso Centro Acadêmico Pereira Barreto nos anos 1970: lá se sabia de tudo.

Edmar Monteiro Filho, crítico literário, é colaborador do Jornal Opção. Email: [email protected]

Os mendigos

Pablo Neruda

Junto às catedrais, atados

ao muro, carrearam

seus pés, seus vultos, seus olhos negros,

seus crescimentos lívidos de gárgulas,

suas latas andrajosas de comida,

e daí, da dura

santidade da pedra,

se fizeram flora da rua, errantes

flores de legais pestilências.

O parque tem seus mendigos

como suas árvores de torturadas

ramagens e raízes:

nos pés do jardim vive o escravo,

como no fim do homem, feito lixo,

aceitada sua impura simetria,

pronto para vassoura da morte.

A caridade o enterra

em seu buraco de terra leprosa:

serve de exemplo ao homem de meus dias.

Deve aprender a pisotear, a afogar

a espécie nos pântanos do desprezo,

a pôr os sapatos na frente

do ser com uniforme de vencido,

ou pelo menos deve compreendê-lo

nos produtos da natureza.

Mendigo americano, filho do ano

de 1948, neto

de catedrais, eu não te venero,

eu não vou colocar marfim antigo,

barbas de rei em tua escrita figura,

como te justificam nos livros,

eu vou te apagar com esperança:

não entrarás em meu amor organizado,

não entrarás em meu peito com os teus,

com os que te criaram cuspindo

tua forma degradada,

eu apartarei tua argila da terra

até que te construam os metais

e saias a brilhar como uma espada.