Camões, nosso poeta maior, morreu de peste em um abrigo para indigentes
21 agosto 2022 às 00h00
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Carlos Russo Jr.
Em 1579, Lisboa foi assolada pela peste. Contaminado, Camões foi recolhido a um abrigo para indigentes. Ali, só e esquecido, morreu. Morreu?
Camões, em sua origem familiar era nobre, escudeiros reais. No entanto, sua real grandeza estava num espírito nobre e humanista. Ele manteve por toda sua vida a alma audaciosa, independente e renascentista. E apesar de todas as dificuldades, elevou-se no ardor daqueles que não se submetem aos tiranos e aos preconceitos de raça, de cor, de credo ou de dinheiro.
E como isto lhe custou muito caro!
Camões, contemporâneo de Shakespeare e de Cervantes, viveu no século XVI, tempo enriquecido pelo renascimento das artes e do livre pensar, mas também gerador das lutas religiosas que, incialmente, contestavam a supremacia e a intolerância do Catolicismo Romano, buscando modernizá-lo e torná-lo mais próximo dos homens. As Reformas iniciais de Lutero, que, entretanto, desembocaram em guerras pelo poder, geraram o Protestantismo associado ao poder político, que se tornou pelo menos tão despótico quanto o próprio Catolicismo, o qual reagiu com as medidas destruidoras da liberdade da Contrarreforma.
E o fanatismo religioso dos Savonarollas e Torquemadas por um lado, dos Calvinos e Knoxs pelo outro, competiam entre si na destruição da liberdade do pensar. E as guerras de conquistas, as torturas, os assassinatos, e as fogueiras arderam à exaustão desde o final do século.
Camões na Corte
Em Coimbra, já nos bancos escolares, lá pelos anos de 1530, Luís Vaz de Camões sofreu as hostilidades dos fanáticos, sendo acusado de paganismo. Principiou a Universidade, mas foi obrigado a deixá-la.
Mudou-se para Lisboa, e aos 20 anos foi aceito como poeta lírico pela Corte Portuguesa, onde ainda por volta de 1540, poetas clássicos como Camões eram benvindos. Mas seu prestígio perante a Corte Real foi de pouca duração. Despertou a inveja dos poetastros ambiciosos como Pero Caminha e Jerônimo Corte Real. E a intriga, as mentiras e a mediocridade possuem sempre, em meios da elite política, uma extraordinária eficiência.
E Camões terminou por ser banido da Corte. A gota d’água foi a peça teatral “Auto de El-Rei Seleuco”, uma obra-prima das letras portuguesas, que se coloca acima dos preconceitos, zombando abertamente do matrimônio como instituição sagrada. Acontece que em Camões o amor é encarado do ponto de vista humano e não se deixa submeter às exigências das regras morais e religiosas. Ademais, a comédia continha uma forte alusão ao amor incestuoso do Rei João III pela própria madrasta, D. Maria, o que, na vida real teria levado ao falecimento prematuro (talvez assassinato) de D. Manuel, dito “O Venturoso”. Ademais, a crítica ao clericalismo radical do novo Rei João III era mais que evidente.
A grande pergunta é porque Camões teria se arriscado tanto trazendo para a realidade presente passagens da antiguidade romana de Plutarco e Petrarca? Acontece que o Rei João III, autodenominado “O Piedoso”, no princípio de seu reinado, possuía certa consideração para com os poetas, não perseguindo Gil Vicente por protestos contra seu excesso de clericalismo. Mas, com o decorrer do reinado, ele viria a ser o introdutor da “Santa Inquisição” em Portugal, enviando centenas de “heréticos” à fogueira. Com Camões foi mais brando, enviou-o para aquele que seria um primeiro exílio.
Exilado da Pátria, Camões conheceu de perto as barbaridades das guerras, os abusos dos poderosos e dos fanáticos e por isto, esteve várias vezes nos cárceres, tendo por pouco escapado da Inquisição.
Sua morte, na miséria, foi fruto da marginalização que sofreu por parte tanto da Igreja, quanto da Realeza. Não foi por acaso, que logo após, quase todos os seus escritos tenham desaparecido. Foram necessárias décadas para que fossem reunidas não somente suas rimas, bem como parcela de sua obra teatral.
“O Diabo Zarolho”
Em 1547, provavelmente por necessidades financeiras, ou devido ao cumprimento de alguma penalidade imposta, guerreou por dois anos com as tropas portuguesas no norte da África, tendo sido glorificado pela bravura e perdido o olho direito em combate. No retorno, esperava uma recepção calorosa na Corte. Ledo engano, em Lisboa foi simplesmente desprezado e apelidado de “O Diabo Zarolho”.
Homem de coragem e fiel aos amigos, estando um dia numa procissão de Corpus Christi, um soldado agrediu a um seu amigo e Camões feriu-o com a espada no pescoço. Preso, foi torturado nas masmorras reais e permaneceu um ano atrás das grades, conseguindo indulto por se comprometer a seguir como combatente nas naus coloniais para o Oriente.
No Oriente, tão pouco Camões deixou de passar por atropelos com as autoridades eclesiásticas e temporais. Mas foi graças a esta passagem que ele imaginou “Os Lusíadas”, descrevendo maravilhosamente todos os lugares pelos quais navegara a esquadra de Vasco da Gama e o épico papel por ela representado. Tudo num empreendimento ousado e triunfal, embora recheado de brutalidade e violências.
Participou, entre 1551 e 1554, de uma série de aventuras guerreiras, como contra o Rei Chambé e contra os turcos no Mar Vermelho, retornando a Goa, possessão portuguesa na Índia, em 1555.
Os anos em que fora obrigado a guerrear, em nada haviam amortecido seu espírito crítico, assim como tão pouco a indisciplina de soldado, sua rebeldia. Em Goa, atacou publicamente a corrupção e desmandos dos governantes e dos padres. Novamente preso, foi deportado para as Ilhas Moluscas.
Acontece que o castigo fora excessivo para o poeta; houve intervenção e se obteve para ele, em 1558, o cargo de procurador-mor de defuntos em Macau. Dizem que, para enganar seus perseguidores, pois era péssimo funcionário, esquecia os mortos e dedicava seu tempo a escrever e esconder “Os Luzíadas” em cavernas e grutas. Mas certo dia, declarado dilapidador da fazenda pública, foi preso e colocado na nau “Prata e Seda” para ser levado e julgado em Goa.
Por um acaso do destino, esta nau naufragou nas costas do Camboja. Camões viajava com Dinamene, jovem com quem mantinha laços afetivos. As águas a levaram, mas ele pode se salvar e com um braço carregou consigo os originais de “Os Lusíadas”.
Viveu, então, algum tempo dentre os budistas e com eles ampliou seu ecumenismo. Finalmente chegou a Goa e ficou prisioneiro entre 1560 e 1562. Soube na prisão da morte prematura de um amor de sua juventude, Catarina de Ataíde, a Natércia, pessoa nobre que os pais haviam proibido que com ele se casasse. Um dos mais belos poemas líricos foi por ele escrito na ocasião:
“Nunca ponha ninguém sua esperança,
Em peito feminil que, da natura,
Somente em ser mudável tem firmeza.”
A mudança do governo português na Índia lhe foi propícia. Don Anton de Noronha o ajudou e lhe arrumou uma sinecura pública para que se aquietasse, mas o poeta ardia de desejos de voltar a Portugal.
E assim o fez. Pelo caminho de volta passou por outra prisão, agora por dívidas, mas finalmente desembarcou em Lisboa em 1570, após 17 anos de exílio.
Depois de 17 anos, retorna à sua querida Pátria.
Não encontrou mais fortuna alguma familiar, apenas uma mãe “velha e pobre”, ele que só trazia nos alforjes “O Parnaso” e “Os Lusíadas” e uma única muda de roupa.
Em 1572, Camões concluiu e dedicou “Os Lusíadas” ao Rei D. Sebastião e, para a sorte de toda a posteridade, o livro foi publicado. Mas “O Parnaso”, de uma forma ou outra se perdeu e apenas foi recuperado, parcialmente, três séculos após.
Camões jamais mendigou ou ao menos pediu apoio financeiro para a nobreza. Pobre, recolheu-se ao convívio popular modestamente, e jamais aceitou um convite que fosse para frequentar os salões de uma Corte por ele definida como “corrompida, estúpida e decadente”.
Em 1579, Lisboa foi assolada pela peste. Contaminado, Camões foi recolhido a um abrigo para indigentes. Ali, só e esquecido, morreu juntamente com o antigo Portugal, cujas tropas de Felipe II da Espanha se preparavam para invadir.
Morria um autor que seria imortalizado pelas suas obras, que nos legaram a postura corajosa de quem jamais se curvou perante os poderosos e os fanáticos que se creem representantes de Deus na Terra.
“Os Luzíadas”
“Os Lusíadas” refletem a decadência do feudalismo e é o principal arauto literário de um Novo Mundo que despertava. Camões, trezentos anos antes da Revolução Francesa, questiona os fidalgos, os “filhos de algo”, suas posições de superioridade e os preconceitos sociais e raciais.
“Por que fez a humana natureza
Entre os nascidos tanta diferença?”
A obra-prima de Camões é grito épico de independência moral. Nela nada se encontra de estreito, de restrito; como todo o homem autêntico de espírito renascentista, ele sempre mais e mais se aproxima do paganismo da natureza que do espírito cristão.
Jamais sua lírica se contamina com preconceitos, combate-os com a fé no humanismo. Como exemplo, a maior recompensa que vê para Vasco da Gama e sua gente é a Ilha dos Amores, florida e perfumada, com suas ninfas em sua estonteante nudez, com o coração e corpo abertos à espera dos heróis lusitanos.
No Canto VII de “Os Lusíadas”, o poeta tece um franco elogio às mulheres liberais de Malabar, nas costas das Índias:
“Gerais são as mulheres, mas somente
Para os da geração de seus maridos:
Ditosa condição, ditosa gente
Que não são de ciúmes ofendidos.”
O que hoje nos chama atenção é o fato de o censor da Inquisição ter-se manifestado favorável à impressão do poema! Acontece que todo o poema é rigorosamente herético.
Por exemplo, Vasco da Gama embora visasse dilatar o império e a fé cristã, só se viu auxiliado pelos deuses e deusas do velho mundo pagão. É verdade também que Baco tentou que suas naus naufragassem, mas Vênus protegeu-as, pois prometera a Zeus torná-los, os Lusos, tão famosos quanto os heróis da Antiguidade.
Podemos imaginar o nível de pressão sobre o censor exercida por D. Sebastião, o Rei, o qual tinha em muito menor grau o fanatismo religioso do falecido avô, o Rei João III. E a maior obra jamais escrita em língua portuguesa lhe fora dedicada.
Ao lado da essência épica, em todo o longo poema, Camões assenta na questão econômica e não em crendices religiosas a base da vida social.
“Quanto no rico assim como no pobre
Pode o vil interesse, e sede amiga
Do dinheiro, que a tudo nos obriga…
O dinheiro rende munidas fortalezas
Faz traidores e falsos amigos;
Este a mais nobre faz fazer vilezas
E entrega capitães aos inimigos:
Este corrompe virginais purezas
Sem temer de honra ou fama perigos,
Este deprava às vezes as ciências,
Os juízes cegando, e as consciências.”
Afinal, a dura experiência de vida que Camões tivera não havia sido em vão, nem as perseguições políticas sofridas haviam sido plantadas em terreno estéril:
“Vê que aqueles que devem à pobreza
Amor divino e ao povo caridade,
Amam somente os mandos e a riqueza,
Simulando justiça e integridade.
Da feia tirania, e da aspereza
Fazem direito e vã severidade.
Leis em favor dos reis se estabelecem;
Em favor do povo só perecem”.
“O cantor da gente surda e ensurdecida”
Mesmo tendo dedicado seu livro a D. Sebastião, em nenhum momento, em nenhuma estrofe, abriu mão de seu livre pensar, aquele que se autodenominava “o cantor da gente surda e ensurdecida”.
“Nem que ache que é justo e que é direito
Guardar-se a lei do Rei severamente
E não acha que é justo, e bom respeito
Que se pague o suor da servil gente”.
E dirigindo-se diretamente ao Rei Don Sebastião, exorta-o a ser um benfeitor de seu povo:
“Favorecei-os logo, e alegrai-os
Com a presença e leda humanidade;
De rigorosas leis desaliviai os
Que assim se abre o caminho à santidade.”
Se “Os Lusíadas” têm o caráter patriótico, também possui um caráter universal, pois “toda terra é pátria para o forte”.
Camões figura dentre os grandes épicos do mundo moderno, lídimos continuadores de Homero, Virgílio e Dante.
Finalmente, Camões também soube, em dado momento, despir-se de um passado glorioso e perceber a decadência da sociedade em que vivia e, melancólico, murmurou para os humanos de todos os séculos:
“No mar tanto tormento e dano,
Tantas vezes a morte apetecida!
Na terra, guerra santa, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida.
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida?
Que não se arme e se indigne o céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno.”
Esta, em breve e respeitoso resumo, foi a odisseia da vida e da obra do poeta maior da última flor do Lácio, Luís Vaz de Camões.
Carlos Russo é escritor e crítico literário.