C. R. Boxer, um historiador como poucos, segundo Kenneth Maxwell

26 maio 2024 às 00h01

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Adelto Gonçalves
O livro “Kenneth Maxwell on Global Trends — An Historian of the 18th Century Looks at the Contemporany World” (“Kenneth Maxwell Sobre Tendências Globais: Um Historiador do Século 18 Olha para o Mundo Contemporâneo”), publicado em 2023, em Londres, por Robbin Laird, editor (Second Line of Defense), acaba de ganhar edição em capa dura (hardcover) acrescida de prefácio deste articulista, de um artigo de dezembro de 2023 (“The new historical era seen from space: the case of the Middle East”) e de mais dois instigantes ensaios de 2001 (“Trap and blank check: a cautionary note about Bush and Afghanistan” e “The C. R. Boxer affair: heroes, traitors, and the Manchester Guardian”).
Dentro do limitado espaço que oferece uma resenha e por sua inegável importância para os estudos da História do Brasil, vai-se destacar aqui apenas o ensaio dedicado ao historiador britânico Charles Ralph Boxer (1904-2000), grande conhecedor da história colonial de Portugal e Holanda. Em linhas gerais, o que se pode adiantar é que Boxer foi educado no Wellington College e no Royal Military College, em Sandhurst, tendo sido tenente no regimento do Lincolnshire de 1923 a 1947.
Serviu na Irlanda do Norte e, de 1930 a 1933, foi tradutor no Japão alocado ao Regimento de Infantaria nº 38 com base em Nara. Em 1933, formou-se como intérprete oficial da língua japonesa. Removido em 1936 para Hong Kong, que à época era colônia britânica, serviu como oficial nas tropas britânicas na China, em serviços de inteligência. Ferido em ação durante o ataque japonês a Hong Kong, em 8 de dezembro de 1941, foi levado pelos japoneses como prisioneiro de guerra e mantido em cativeiro até 1945, tendo sido torturado.
Mesmo assim, quando libertado, ao final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), retornou ao Japão como membro da Comissão Britânica no Extremo Oriente em 1946-1947. Durante sua carreira militar, publicou mais de 80 livros e opúsculos sobre a história do Oriente, sobretudo dos séculos XVI e XVII.
Cadeira Camões de Português
Como major do Exército, aposentou-se em 1947, quando o King’s College, de Londres, ofereceu-lhe a cadeira Camões de Português, cargo em que permaneceu até 1967. Nesse período, a Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres o nomeou seu primeiro professor de História do Extremo Oriente, tendo servido no cargo de 1951 a 1953.
Ao se aposentar em 1967 da Universidade de Londres, aceitou o posto de professor visitante na Universidade de Indiana, onde serviu como conselheiro na Lilly Library. De 1969 a 1972, foi responsável pela cadeira de História da Expansão Europeia no Ultramar na Universidade de Yale. Era um poliglota, pois, além do inglês, falava com fluência os idiomas japonês, chinês, português, espanhol e holandês.

Definido por Américo Jacobina Lacombe (1909-1993) como “o maior representante da cultura inglesa interessada pelo mundo de língua portuguesa”, Boxer é autor do notável “Salvador de Sá e a Luta pelo Brasil e Angola, 1602-1686” (Companhia Editora Nacional/Editora da Universidade de São Paulo-Edusp, 1973, tradução de Olivério de Oliveira Pinto), publicado em 1952 em Londres. Essa obra, como anteviu Lacombe, tem servido como modelo de construção para muitos historiadores brasileiros, “pelo método, pela exatidão e pela arte que lhe dá um tom de leitura palpitante”.
É de se lembrar que Salvador Correia de Sá e Benevides (1602-1686) foi um militar do império ultramarino português que, durante a Guerra da Restauração (1640-1668), a serviço do reino de Portugal, destacou-se no comando da frota que, em 1647, reconquistou Angola e São Tomé e Príncipe, terminando a ocupação holandesa. Foi por três vezes governador da capitania do Rio de Janeiro.
Além dessa, há pelo menos mais duas obras de sua autoria fundamentais para a compreensão da construção do Brasil: “Os Holandeses no Brasil, 1624-1654” (Companhia Editora Nacional, 1961) e “A Idade de Ouro do Brasil — As Dores do Crescimento de uma Sociedade Colonial” (Companhia Editora Nacional, 1963).
Charles Boxer: herói ou traidor?
O que poucos sabem é da vida desdita que Boxer levou e que Maxwell levanta em seu instigante ensaio, começando por chamá-lo de herói, no seu melhor sentido, definição que passa longe das celebridades do esporte e do cinema ou da TV. E que, segundo o historiador, teria sido vítima de “antigos ressentimentos, fofocas e ciúmes de um mundo pós-colonial que agora trabalha para violar a reputação de um indivíduo verdadeiramente complexo e notável”.
Faz Maxwell essa observação a propósito de um artigo assinado pelo professor Hywel Williams (1953), membro do Parlamento britânico, e publicado a 24 de fevereiro de 2001 no jornal The Guardian, de Londres, em que o articulista reconhece Boxer como “um bom soldado e brilhante historiador”, que, no entanto, “pode ter sido um traidor que entregou seus antigos companheiros num campo de prisioneiros administrado por japoneses em Hong Kong, de uma forma que minou todo o sistema de inteligência britânico no Sudeste Asiático”.

Para Williams, Boxer teria pertencido a uma geração de intelectuais britânicos que “haviam abraçado o comunismo marxista de modelo soviético”. E por isso teria sido “um exemplo espetacular de tentação em tempo de guerra”. Enfim, um intelectual que, por sua formação marxista, teria funcionado como espião contra os interesses ocidentais.
No mesmo “The Guardian”, tradicional jornal fundado em 1821 e considerado a mais forte voz liberal da Grã-Bretanha, observa Maxwell, deu-se em 10 de março de 2001 a publicação de um artigo em que o historiador norte-americano Dauril Alden (1926) refutava as insinuações e acusações de Williams, observando que, longe de ser o responsável pelo prolongamento da Segunda Guerra Mundial, Boxer foi quem disse que não poderia haver erro maior do que considerar que os militares japoneses não estavam profundamente enraizados na China. “Foram o Ministério da Guerra e o Ministério das Relações Exteriores britânicos que ignoraram e subestimaram o risco”, garantiu.
Coincidentemente, Alden acabara de escrever uma biografia de Boxer que logo seria publicada pela Fundação Oriente, em Lisboa, com o título “Charles R. Boxer — Uma Vida Incomum”, soldado, historiador, professor, colecionador, viajante. Segundo Maxwell, o professor Alden é um “meticuloso estudioso da velha escola para a qual uma documentação sólida é o núcleo dos estudos históricos”.
Levando isso em conta, o jornal, segundo Maxwell, teria até removido o artigo de Williams de seu site, tornando-o inacessível, uma forma de reconhecer que não deveria ter publicado aquele texto com difamações e acusações infundadas ou sem comprovação documental contra a honra “do mais honrado dos homens”, um estudioso que, para gerações de historiadores de países de língua portuguesa, era considerado “um verdadeiro colosso”.
Salvador Correia de Sá e Benevides
De fato, como lembra Maxwell, Boxer escreveu, em mais de 350 publicações, textos da mais alta erudição sobre as guerras navais no Golfo Pérsico no século XVI, as tribulações das rotas marítimas entre Europa e Ásia, traçou um brilhante panorama do Brasil à época das descobertas do ouro e da expansão das fronteiras no século XVII, “magnífica síntese da história colonial de Portugal e Holanda, bem como estudos comparativos sobre instituições municipais e sobre raça e relações sociais na Ásia, África e América do Sul”.
Para o historiador, o trabalho de Boxer sobre a vida e obra de Salvador Correia de Sá e Benevides é um de seus melhores livros, pois conta “o papel decisivo que ele teve na titânica luta entre os poderes ibéricos e os holandeses pela hegemonia no Atlântico Sul no século XVII”.
Maxwell lembra ainda que, quando das guerras coloniais de Portugal na África, Boxer contestou a propaganda “luso-tropicalista” difundida pela ditadura de António de Oliveira Salazar (1889-1970), com base nas ideias do pensador brasileiro Gilberto Freyre (1900-1987), para quem “o colonizador português não tinha preconceitos raciais”. Por isso, Boxer foi também sistematicamente difamado pelo regime salazarista.
Boxer e o affair com Emily Hahn
Da vida privada de Boxer, Maxwell lembra que ele teve em Hong Kong, em 1940, um affair com a jornalista norte-americana Emily Hahn (1905-1997) que se tornou um dos romances mais conhecidos do século XX. A essa época, porém, Boxer já era casado, desde 1939, com Ursula Tulloch (1910-1996). Divorciaram-se em 1947. Emily Hahn foi por 70 anos uma das mais produtivas colaboradoras do jornal “The New Yorker” e publicou 52 livros e centenas de artigos, reportagens e poemas. Seu affair com Boxer está contado em seu livro “China to me: a Partial Autobiography” (1944).
Segundo Williams, o casal teria “colaborado” com os japoneses, o que para Maxwell “não passaria de um esforço de imaginação”. Para Williams, Emily Hahn teria sido “uma feminista e simpatizante do comunismo”, o que reforçaria a acusação de que Boxer poderia ter atuado como agente duplo soviético dentro do governo britânico. Com Emily Hahn, o historiador teve um casamento duradouro e duas filhas.
Maxwell lembra que Boxer sempre se recusou a escrever a sua autobiografia, apesar dos obstáculos e lances curiosos que teve de superar em sua existência, especialmente como prisioneiro de guerra. Recusou também várias homenagens e condecorações, embora nunca tenha deixado de atender a convites para conferências.
Em 1989, a convite de Maxwell, concedeu entrevista aos alunos do Camões Center na Universidade de Colúmbia, quando afirmou que amava o Japão, apesar da vida perigosa que levara e dos percalços que tivera de enfrentar com os japoneses em Hong Kong: “Quando você é jovem, tem dinheiro e busca a luxúria como uma águia, você sempre o faz”, acrescentou.
Para Maxwell, Boxer, que enfrentou três anos de cativeiro, tortura e solidão, não foi traidor nem herói, mas uma “pessoa com uma integridade feita de granito”. E que poderia ser definido com uma palavra: stickler, termo que pode ser entendido como aplicável a “uma pessoa tenaz e persistente, que sempre esteve em busca da verdade”. E que Boxer atribui a Salvador de Sá na abertura de seu livro sobre o navegador, a quem chama de “um velho e notável stickler”.
Quem é Kenneth Maxwell
Kenneth Maxwell (1941) foi diretor e fundador do Programa de Estudos Brasileiros do Centro David Rockefeller de Estudos Latino-Americanos, da Universidade de Harvard (2006-2008), e professor do Departamento de História de Harvard (2004-2008). De 1989 a 2004, foi diretor do Programa para a América Latina no Conselho de Relações Exteriores e, em 1995, tornou-se o primeiro titular da cátedra Nelson e David Rockefeller em Estudos Interamericanos. Atuou como vice-presidente e diretor de Estudos do Conselho de Relações Exteriores, em 1996. Lecionou anteriormente nas universidades de Yale, Princeton, Colúmbia e Kansas.
Fundou e foi diretor do Centro Camões para o Mundo de Língua Portuguesa na Universidade de Colúmbia e foi diretor de Programa da Tinker Foundation, Inc. De 1993 a 2004, foi revisor de livros do Hemisfério Ocidental para Relações Exteriores. É colaborador regular da revista “New York Review of Books”, foi colunista semanal entre 2007 e 2015 do jornal “Folha de S. Paulo” e é colunista mensal de “O Globo” desde 2015.
É autor do clássico “A Devassa da Devassa” (Paz e Terra, 1977), lançado em 1973 na Inglaterra com o título “Conflicts and Conspiracies: Brazil and Portugal, 1750-1808” (Cambridge University Press), seu primeiro livro. Publicou também “Marquês de Pombal — Paradoxo do Iluminismo” (1996), “A Construção da Democracia em Portugal” (1999), “Naked Tropics: Essays on Empire and Other Rogues” (2003), “Chocolate, Piratas e Outros Malandros” (Paz e Terra, 1999) e “Mais malandros e Outros — Ensaios Tropicais” (Paz e Terra, 2005), entre outros.
Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP). É autor de “Gonzaga, um Poeta do Iluminismo” (Nova Fronteira), “Bocage — o Perfil Perdido” (Editorial Caminho e Imesp) e O Reino, a Colônia e o Poder: o Governo Lorena na Capitania de São Paulo — 1788-1797” (Imesp). E-mail: [email protected].